Participamos do

Rotas Performativas: "Pegando o Sol com a peneira" e "Terrorismo de gênero"

17:13 | Mar. 24, 2018
Autor O POVO
Foto do autor
O POVO Autor
Ver perfil do autor
Tipo Notícia

[FOTO1] 

Pegando o Sol com a peneira

O homem carrega em si um traje; camisa abotoada até o pescoço, sapatos pretos que se afundam em pegadas. No horizonte, um deserto de mar, sal e sol, quiosque e cadeiras de plástico. A praia anuncia um futuro em extensão, em um tempo que aparenta escorrer despreocupado entre conversas e consumos e banhos de mar. Porém, o homem parece querer desinventar objetos, como quem quer dar funções às coisas que não são delas mesmas. Como peneirar as intimidades do mundo?

Seja assinante O POVO+

Tenha acesso a todos os conteúdos exclusivos, colunistas, acessos ilimitados e descontos em lojas, farmácias e muito mais.

Assine

Tento apalpar as palavras como um sopro, na tentativa de não empobrecer a imagem. “Sou puxado por ventos e palavras”. Meus olhos se inundam de poesia ao mirar aquele homem, pegando o sol com a peneira, em uma paisagem deslocada de sentido. Ademais, outros olhos comungam a miragem, cada qual com seus artefatos. Câmeras de celular podem captar sinestesias? Meu desejo é me fundir nessa paisagem. Então mergulho. “Um fim de mar colore os horizontes”.

O futuro é aqui mesmo onde a experiência transfigura forma de gente. O homem vira coisa, vibra areia, pintura expressionista, em uma silenciosa caminhada pela praia. Seu corpo risca paisagem e se arrisca em um espaço normatizado pelas convenções do lazer e descanso. Afinal, quem se dispõe a estar na praia por motivos outros que não os óbvios? Mas, parece mesmo que o homem quer engolir semióticas para, enfim, fluir imagéticas. Águas molharam as sensações.

“A luz das horas me desproporciona”. O homem continua a caminhar e caminhar como se quisesse alcançar Iracema na Praia de Sabiaguaba. Mas o futuro (pre)serva perigos na carne e num sussurro, uma voz alerta retorno. Antes de partir, contudo, o homem quer navegar, desiventar corpo pra virar barco e entre uma onda e outra, mergulha, dissipando tudo como sonho. A vida urge do lado de lá, em tempos de (in)delicadeza, dióxido de carbono e muito sódio. “Tenho uma dor de concha extraviada”.

*fragmentos de “O livro das ignorãças”, de Manoel de Barros

[FOTO2] 

Terrorismo de Gênero

Sexta-feira em Fortaleza, dois performers vestidos de “enfermeiras terroristas” caminhavam e dançavam pela Av. da Universidade, no Benfica, com o objetivo de imperar novas ordens nos muros da cidade por meio de lambes.

Perto da entrada do campus de Ciências Humanas da Universidade Federal do Ceará um transeunte arrancou apenas um dos lambes colados durante a ação, nele estava escrito: “Seja viado”, entretanto, ele não falou nada. Antes disso, uma mulher também se incomodou com o ato da fixação do lambe e disse para os performers que chamaria a polícia, ao mesmo tempo que arrancava o papel fixo no muro que nem sequer era da sua residência. Tirando essas duas pessoas, ninguém mais questionou a ação, elas apenas davam risadas e comentavam entre si baixinho, as frases que consegui ouvir foram: “estou um pouco assustado!” e “quem se propõe a fazer uma coisa dessas?”.

Durante o festival eu acompanhei performances e performers em diferentes espaços e, com isso, pude ver claramente como a materialidade do corpo afeta o ambiente urbano. Constatei que, no caso do corpo feminino que age diferentemente da padronização social há uma sexualização e hostilização violenta, principalmente pelos homens. Entretanto, em relação aos dois performers homossexuais há outro tipo de hostilização: risadas, risadas e mais risadas, tanto dos homens quanto das mulheres. Mas por que isso ocorre? Certamente a questão do preconceito e da intolerância homossexual é marcada por variáveis sociais (raça, situação socioeconômica, escolaridade, gênero), assim como pela mídia: como, por exemplo, nas novelas.

Impossível não lembrar de Michel Foucault, ele afirma que a constituição do dispositivo da sexualidade se dá por elementos que tratam de um conjunto heterogêneo; que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas e etc. Tal dispositivo é o controle normativo do qual as práticas e os discursos partem e isso se revela não apenas pelo que se diz e se mostra, mas também por meio daquilo que não se mostra e nem se diz. Se trata de um jogo de relações de poder, da configuração de uma racionalidade, de uma organização por meio das quais o discurso e suas práticas se dão.

Talvez, por isso, o preconceito é algo velado, mas visivelmente presente no espaço público que produz e é produzido pela sociedade, como um espelho.
Nesta performance isso ficou muito claro, entretanto os corpos disruptivos dos performers atravessaram o preconceito velado da cidade, como pode ser lido em um dos lambes que permaneceram colados na avenida: “se me atacar eu vou atacar”.

 

Marcelle Louzada e Pati Bertucci

Artistas e pesquisadoras

 

Dúvidas, Críticas e Sugestões? Fale com a gente