Do livro ao filme: "Ainda Estou Aqui" reconstrói a trajetória de Eunice Paiva
Livro e filme "Ainda Estou Aqui" reconstroem a trajetória de Eunice Paiva, advogada que transformou a perda do marido para a ditadura militar em luta pelos direitos humanos
Após 263 páginas detalhando a luta de uma família para conseguir justiça a morte do pai, Marcelo Rubens Paiva termina o livro "Ainda Estou Aqui" registrando que os militares responsáveis pela tortura e morte do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva seguem impunes pela Lei da Anistia, que perdoa crimes cometidos por militares e guerrilheiros durante a ditadura.
Em setembro de 2014, a defesa dos acusados protocolou uma reclamação no Supremo Tribunal Federal (STF) para extinguir a ação penal contra eles. Em 2015, Marcelo Rubens Paiva publica a obra literária e afirma: o caso de seu pai ainda está longe de ter um desfecho.
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O ano de 2014 também marca a parte final do filme de Walter Salles, lançado em 2024 e indicado a três categorias do Oscar. Em uma das cenas, vemos Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Montenegro nessa etapa da trama, já em estágio avançado de Alzheimer, doença que a acompanhou por 15 anos até sua morte, em 2018.
Ícone da luta contra a ditadura militar no Brasil, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva teve cinco filhos com Rubens Beyrodt Paiva: Veroca, Eliana, Nalu, Marcelo e Babiu. Ela se tornou advogada depois de viúva e trabalhou incansavelmente pelos direitos humanos e pela causa indígena.
A obra cinematográfica apresenta uma Eunice um pouco diferente daquela retratada no livro de Marcelo Rubens Paiva. Em entrevista à CNN, Fernanda Torres, a principal intérprete de Eunice no longa e indicada ao Oscar de melhor atriz pela sua atuação, afirmou que a advogada tinha uma “delicadeza combativa”. “Ela não gastava tempo com nada que não fosse objetivo, contundente, persuasivo. Com extrema delicadeza, combateu o Estado autoritário através de uma imensa delicadeza combativa.”
No livro, Marcelo Rubens Paiva traça um retrato multifacetado da mãe: “Não foi na vida uma digna mãe italiana, mas uma advogada tão eficiente e requisitada que, aos setenta anos, nunca a deixavam se aposentar”, escreve. Ao mesmo tempo, descreve uma mulher de temperamento forte, por vezes comparando-a a "uma namorada birrenta e temperamental".
Walter Salles escolhe mostrar o Alzheimer de Eunice Paiva no desfecho do filme, na contramão de Marcelo Rubens Paiva, que dedica logo o primeiro capítulo do livro para a memória, redescoberta em níveis diferentes durante a degradação da memória de sua mãe. Para ele, a memória é como uma fogueira que nos guia para onde queremos ir, “mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa”.
A objetividade de Eunice é ilustrada constantemente na obra literária. Em um dia marcante, ela foi ao Fórum João Mendes ao lado dos filhos para ser interditada, para passar ao filho a responsabilidade de administrar seus bens e cuidar dela mesma. O juiz pergunta: “A senhora sabe por que está aqui?”, ela responde: “Porque estou velha demais e preciso que cuidem de mim”, simples assim.
O filme resgata a memória familiar nos tempos da ditadura militar, misturando fragmentos das lembranças de Rubens Paiva – cassado, torturado e morto pela repressão – e a incansável busca de Eunice para descobrir o paradeiro do marido, sem demonstrar fragilidade diante dos cinco filhos. Já o livro faz uma investigação íntima e histórica, buscando preencher as lacunas deixadas pelo desaparecimento do pai.
Marcelo Rubens Paiva recorda que raramente via a mãe chorar, com destaque para uma dessas poucas vezes, na Parada Gay de 2005: “Ela acenava para os carros alegóricos, com strippers dançando pancadão. (...) Ela chorava. Acenava e chorava, emocionada, enquanto eles rebolavam. Foi das poucas vezes que a vi chorar.”
Embora tanto o livro quanto o filme sirvam como homenagem a Eunice Paiva, o cinema raramente consegue capturar todos os capítulos de uma história – ainda mais uma tão complexa como a dos Paiva.
A última cena na qual vemos o ator Selton Melo representar Rubens Paiva é o dia ensolarado de feriado em que seis homens armados levam o ex-deputado para depor. Marcelo Rubens Paiva era criança e achou estranho o movimento em sua casa pois os homens “não estavam com roupas de praia”. Já adulto, ele descreve: “o feriado de 20 de janeiro de 1971 é um dia que não tem fim”. Eunice nunca perdoou o marido pelo descuido.
O cinema brasileiro tem longa tradição em narrativas sobre a ditadura militar, mas Walter Salles opta por um caminho diferente: ao contrário de outras obras que exploram a violência gráfica da tortura e da repressão, Ainda estou aqui trabalha o terror da ditadura de maneira sutil, com sons e planos secundários. Afinal, Eunice não foi torturada fisicamente, mas viveu seus próprios horrores.
Ela passou doze dias no DOI-CODI, sem notícias do mundo exterior, sem luz solar, e permaneceu com a mesma roupa, sem banho ou qualquer higiene durante sete dias. Era chamada sistematicamente para prestar depoimentos e obrigada a folhear álbuns de fotos com rostos de pessoas consideradas subversivas pelo regime. A grande surpresa, segundo Marcelo, foi que ela acabou sendo liberada.
“Grandes gestos são humildemente casuais. Tenho um agradecimento a fazer aos militares brasileiros: obrigado por não terem matado minha mãe”, escreve Marcelo Rubens Paiva logo no início de Ainda estou aqui.
Enquanto Walter Salles aposta na sutileza para contar sua história, Marcelo Rubens Paiva dedica seu livro a detalhar as ações do Exército e da polícia contra aqueles considerados terroristas, comunistas e subversivos. Em tom pessoal e indignado, ele denuncia a violência sofrida por seu pai e por tantos outros que se opunham à repressão.
O título da obra literária e cinematográfica é um alerta e uma lembrança, a fala constante de uma Eunice Paiva que já deixava escapar a lucidez, “caso alguém não tenha reparado: Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui”. No final, livro e filme, é sobre a mesma coisa, a mesma pessoa, Eunice Paiva. E a morte de Rubens Paiva ainda não tem fim.
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