'Ainda Estou Aqui': quem foi Eunice Paiva, vivida por Fernanda Torres?

A advogada foi um dos símbolos na luta contra a ditadura militar no Brasil e auxiliou nas buscas por seu marido, Rubens Paiva, desaparecido político

08:21 | Nov. 12, 2024

Por: Penélope Menezes
'Ainda Estou Aqui': conheça trajetória de Eunice Paiva, inspiração para o filme (foto: Reprodução/Arquivo; Divulgação/Alile Dara Onawale)

Era 20 de janeiro de 1971 quando Rubens Paiva foi levado por militares para interrogatório e nunca mais foi visto pelos familiares. Agora, 53 anos depois, um longa-metragem traz a narrativa de sua vida e de seu assassinato na Ditadura sob a ótica de sua esposa, Eunice Paiva.

Logo nos primeiros dias após a estreia no circuito comercial, “Ainda Estou Aqui” arrecadou R$ 8,6 milhões nas salas de cinema do Brasil entre os dias 7 e 10 de novembro, segundo dados Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Abraplex). O longa é a aposta brasileira para garantir uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar.

Com Fernanda Torres e Fernanda Montenegro no papel de Eunice, a matriarca tem a sua luta no período militar reconhecida durante a produção do diretor Walter Salles.

"Era o silêncio em pessoa. Ela não chorava. Levantou a cabeça e seguiu em frente. Ela era muito contida e racional. Quando dava entrevistas sobre o caso do meu pai, se mostrava uma mulher muito calma e inteligente. E era mesmo", conta Maria Beatriz, uma de suas filhas, ao O Globo. "Mas ela também tinha um outro lado, bem-humorado, soltava umas frases engraçadas."

Conheça Eunice Paiva e sua trajetória em prol do reconhecimento do assassinato do marido pelo Estado.

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"Ainda Estou Aqui": quem foi Eunice Paiva?

Nascida em 7 de novembro de 1929, Maria Lucrécia Eunice Facciolla cresceu no bairro do Brás, em São Paulo, em uma família de origem italiana.

Em sua juventude, alcançou o primeiro lugar no vestibular para Letras da Universidade Mackenzie e brigou com o pai pelo direito de estudar. Conforme o portal Memórias da Ditadura, cultivou amizades com escritores conhecidos, como Lygia Fagundes Telles e Haroldo de Campos.

O sobrenome Paiva foi adicionado em razão de seu casamento com Rubens, com quem teve cinco filhos.

Desaparecimento de Rubens Paiva e a prisão de Eunice

Na madrugada de 20 de janeiro de 1971, Cecília de Barros Correia Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona foram detidas por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica, no aeroporto do Galeão (RJ), e cartas de militantes políticos exilados foram encontradas; Rubens Paiva era o remetente de uma delas.

Com metralhadoras, seis agentes armados invadiram a casa da família e levaram Rubens em seu próprio carro até o Quartel da 3ª Zona Aérea. Após o sequestro, as torturas começaram. As informações são do Memorial da Resistência de São Paulo.

No dia seguinte, Eunice e a filha do casal, Eliana (na época com 15 anos), também foram levadas. A jovem ficou presa por 24 horas.

Já Eunice permaneceu 12 dias sob a guarda do Exército, submetida a interrogatórios constantes. Quando foi liberada, ainda sem notícias sobre o paradeiro do marido, a matriarca passou a cobrar o governo militar por respostas.

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Luta por democracia e respostas da Ditadura

Após o desaparecimento de Rubens, Eunice chefiou a família e, na busca por autonomia e por seu marido, voltou à universidade para cursar Direito. Assim, tornou-se advogada especialista em direito indígena.

"Ela ficou com cinco crianças e sem dinheiro nenhum, mas não parou, tocou em frente, se reconstruiu, priorizou sua integridade enquanto mãe. Ela sempre dizia que nós não éramos uma família vítima. A vítima era o País", relata Marcelo Rubens Paiva, filho do casal, ao O Globo.

Em diversas cartas ao presidente Emílio Garrastazu Médici e outras direcionadas a diferentes autoridades, Eunice exigiu a verdade sobre o paradeiro do marido. Os órgãos oficiais, quando forneciam alguma resposta, davam relatos diferentes: ou que ele havia sido sequestrado por desconhecidos ou que havia fugido para Cuba.

Atuou como consultora da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição Federal Brasileira, em 1988.

Ao lado da estilista Zuleika Angel Jones, a Zuzu Angel, de Crimeia de Almeida, Inês Etienne Romeu, Cecília Coimbra, entre outras mulheres, Eunice se tornou símbolo das campanhas pela abertura de arquivos sobre vítimas do regime.

Ela foi uma das principais forças pela promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas durante o regime militar. Em 1996, o atestado de óbito de Rubens Paiva foi emitido oficialmente.

Eunice, a advogada indigenista

Na política indigenista, fez parte da fundação do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iama), em 1987, organização em que “atuou até 2001 na defesa e autonomia dos povos indígenas”, segundo relato no Memórias da Ditadura.

Atuou contra a violência e a expropriação indevida de terras sofridas pela população indígena. Junto da antropóloga Carmen Junqueira, escreveu o livro "O Estado contra o índio".

Indo além da sua atuação como advogada, participava de congressos acadêmicos, debates públicos, sessões de documentários e palestras, sustentando a dignidade indígena para além da personalidade jurídica.

Eunice morreu aos 86 anos de idade, em 13 de dezembro em 2018, após viver por 14 anos com a doença de Alzheimer.

Fernanda Torres sobre Eunice Paiva: "muito especial"

Nas telonas quem dá vida a Eunice Braga em "Ainda Estou Aqui" é a atriz Fernanda Torres, cuja "maior dificuldade era ter a delicadeza dela", como contou à revista Elle.

"Não sabia quem era Eunice Paiva. Quando fui fazer o filme, fiquei chocada com a mistura, porque ela é muito forte e, ao mesmo tempo, delicada. Ficava vendo entrevistas porque ela tinha sempre um sorriso, mesmo quando estava falando as coisas mais terríveis, como não ter acesso ao corpo do marido", conta sobre a preparação da personagem.

Para Fernanda, a contenção das emoções foi uma descoberta. "A Eunice é muito especial. Ela é uma guia para nós todos sobre como amadurecer."

"Esse processo de reinvenção da Eunice, de refundação dela, de sair do estado da dona de casa intelectual perfeita, mulher daquele homem maravilhoso, e virar um ser perdido no mundo, sozinha, e a maneira como encarou isso, se reinventou e virou ela, nas condições mais adversas, é uma aula de maturidade", analisa.

"Ainda Estou Aqui": inspiração para o filme

O filme de Walter Salles foi inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice. A obra traz os desafios da matriarca na criação de cinco filhos, seguindo o desaparecimento do marido, e sua luta contra o Alzheimer.

A história, publicada em 2015, terá uma espécie de continuação em 2025, focada em eventos mais recentes relacionados à família Paiva.

"Vai ser sobre como a minha família sofreu durante o período do Bolsonaro, que era nosso inimigo pessoal e nós nem sabíamos disso", disse Marcelo Rubens Paiva à coluna Painel das Letras, da Folha de S. Paulo. “Bolsonaro cuspiu no busto do meu pai, disse mentiras sobre ele ter participação na luta armada”, completa. (Colaborou Marcela Tosi)