Gramado: Juliana Rojas encara Brumadinho e seus fantasmas
Premiado em Berlim, "Cidade; Campo" recebeu sua primeira exibição brasileira na competição do 52º Festival de GramadoQuando Alfred Hitchcock abandonou sua protagonista ainda na metade de “Psicose” para apresentar o rumo de uma nova história dentro do mesmo filme, a plateia dos anos 1960 ficou perplexa com a quebra de narrativa dentro de uma obra tão comercial.
Mesmo que já estejamos mais acostumados com essas rupturas tantos anos depois, a noite desta quarta-feira, 14, teve o seu grau de surpresa em Gramado com “Cidade; Campo”, filme de Juliana Rojas que venceu o prêmio de Melhor Direção da Mostra Encounters no 74º Festival de Berlim.
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Na primeira metade do filme, Joana se muda para a casa da irmã após o rompimento de uma barragem em Minas Gerais destruir tudo o que ela reconhecia como lar – o que inclui Alecrim, um cavalo branco que fica voltando nos seus delírios como um anjo que não consegue deixá-la sozinha.
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Em dado momento, ela olha da horta para o céu cinza de São Paulo e simplesmente canta, como num musical, sobre a trágica saudade de uma vida que desapareceu.
O contexto, claro, ganhou uma triste interpretação coincidente com a realidade atual do Rio Grande do Sul que também viu famílias perderem casas, vidas e memórias com as enchentes de maio. Na trama da ficção, Joana não consegue encarar de fato esse sentimento de recomeço porque a cidade nunca vai abraçá-la como o campo.
“Em Berlim falaram que a Joana era vítima das mudanças climáticas, mas ela é vítima de um capitalismo violento que se perpetua em Minas Gerais e no Brasil há séculos. Ela de repente perde tudo, ela perde o chão”, comentou Fernanda Vianna sobre sua personagem.
Sua presença tem uma gravidade tão fascinante com peso e fluidez que fui tomado por uma melancolia próxima ao luto quando o roteiro precisa deixá-la para trás.
Entre a saudade e o reencontro com o passado
Na segunda metade o filme parte para o campo, acompanhando a história de uma mulher que volta para assumir a fazenda que herdou do pai falecido.
Como se rimasse com “Pasárgada” da Dira Paes, exibido na noite anterior, a personagem está de cara para a floresta com o abraço e a ameaça dos seus sons e fantasmas. Gravado no interior do Mato Grosso do Sul, a mata grita e assusta – talvez seja o espírito do seu pai ou talvez seja a própria terra.
A saudade do segmento anterior logo é superada porque o drama de reencontro com o passado é liderado por Mirella Façanha, atriz de forte comunicação entre a coragem e o temor de guiar os rumos do seu destino.
“As opções para uma atriz preta e gorda são muito específicas e com pouca humanidade. Quando eu recebi o convite da Juliana foi muito emocionante, um presente na minha trajetória profissional e de vida”, comentou a atriz na coletiva de imprensa.
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Mirella constrói uma sinergia muito sincera com Bruna Linzmeyer, que na trama interpreta sua namorada, dando ao filme um carinho que estava muito sublimado até então.
As duas encenam, inclusive, a cena mais bonita de sexo lésbico que eu já tenha visto no cinema, com tesão e amor que entrelaçam corpos diferentes. É admirável que esse elemento não se perca em meio a um conflito com tanto medo e angústia.
Apesar dessas duas histórias terem pouco contato entre si, a diretora reforça suas proximidades: “Uma está dentro da outra. Flávia e Joana são personagens migrantes que vieram de outro lugar e estão se reinventando. Há também o aspecto da fantasmagoria numa existência espiritual para refletir a morte”, concluiu.
"Cidade; Campo": Juliana Rojas se afirma como uma das grandes autoras desse tempo
Diante de todas as grandes ideias que fazem desse filme algo muito longe do comum, é bonito perceber que Juliana Rojas o faz com uma propriedade de quem também sabe fazer isso soar tão familiar.
Do seu musical mordaz “Sinfonia da Necrópole” num cemitério paulista ao lobisomem de “As Boas Maneiras”, passando ainda por “Trabalhar Cansa” e o assombroso “O Duplo”.
Neste novo capítulo, a maior emoção é perceber “Cidade; Campo” na afirmação de Juliana como uma das grandes autoras desse tempo, que tem a coragem de criar perspectivas não apenas pela vontade de desmontar os padrões, mas pela segurança de dominá-los – o que é especialmente raro neste momento flexível do Cinema Brasileiro, na certeza de que seus filmes estão olhando para um lugar que ainda não chegamos.
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