Moda periférica: projeto escolar de Maracanaú desafia preconceitos

Trabalho desenvolvido por sete alunas da escola José Milton de Vasconcelos Dias ultrapassa limites da sala de aula com celebração da moda como resistência

Falar sobre moda dentro da periferia é olhar para as vivências da juventude na comunidade e entender que a moda vai além do vestir, ela representa também a liberdade de um grupo marginalizado pela sociedade. O vestuário faz parte da construção identitária do indivíduo e é o combustível para a sua autoafirmação — refletida em cada costura, bordado, acessório e enfeite.

Em Maracanaú, cidade da região metropolitana de Fortaleza, especificamente no bairro Acaracuzinho, as estudantes da escola José Milton de Vasconcelos Dias, Vitoria Queiroz, Leticia Costa, Mirella Camurça, Maria Teodosio, Ynarah Rodrigues e Vitoria Lima se uniram em prol dessa linguagem artística com o projeto “Moda Periférica”.

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De início, as alunas pensaram em um trabalho para a feira de ciências sobre a moda através do tempo, uma retrospectiva dos vestuários tendências a partir dos anos 1960. Em uma das reuniões do grupo, se questionaram: por que não falar do que a gente mesmo veste?

Em busca de aprofundamento no assunto, o grupo entrevistou a estudante de moda na Universidade Federal do Ceará (UFC), Allana Sofia. Elas realizaram um questionário sobre moda na busca por um norte de como conduzir o projeto.

“Foi o ponto principal para abrir nossa mente. Além das perguntas do questionário que ela respondeu, Allana foi falando sobre vários assuntos como gordofobia, transfobia, homofobia, racismo, classe social e as diferenças”, afirma Vitoria Queiroz em entrevista cedida ao O POVO.

Guiadas por Allana Sofia, que deixou claro para as alunas do projeto o quanto a moda é uma questão política, elas mergulharam na intersecção entre moda, identidade e periferia. Juntas, entenderam que a moda é também um instrumento que combate estereótipos e preconceitos.

A partir disso, as sete integrantes do grupo perceberam que o foco do trabalho já não se tratava mais da evolução da moda, e sim, das mudanças sociais com o enfoque de trazer temas transversais.

Moda como "campo político"

“A gente foi vendo que a moda é tipo um campo político, podemos discutir vários assuntos dentro da moda, não só falar da moda em si, mas também de outros assuntos bastante importantes”, explica Maria Teodosio, uma das integrantes do grupo "Moda Periférica".

As alunas destacam a importância de Allana Sofia para a virada de chave do grupo. Allana trouxe seu olhar e sua história como uma mulher trans da periferia e estudante de design de moda, um curso que ainda tem suas raízes elitizadas, e mostrou como elas poderiam discutir diversos assuntos dentro da moda.

O trabalho apresentado na feira de ciências em junho de 2023, na EEM José Milton de Vasconcelos Dias, foi orientado por Jô Araújo, professora de sociologia, formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), que, em entrevista ao O POVO, explicou sobre o processo de criação do “Moda Periférica”.

“Agora as feiras de ciências estão tendo uma abertura maior para falar de outras ciências, porque historicamente nas feiras eram só trabalhos de ciências da natureza. Então, as meninas já sinalizaram que queriam estudar algo relacionado à moda”, afirmou Jô Araújo.

“Elas perceberam que dava para falar de outros temas, e que esses temas foram se encaixando, como transfobia dentro da moda, diversidade dentro da moda, periferia dentro da moda, e principalmente como a moda periférica é acolhida na escola”, completou a professora.

Para as alunas, o debate visa também criar um espaço de celebração das identidades dentro do ambiente escolar. “A gente tá aqui, mas a gente não vê a nossa cara aqui. A gente tá aqui todo dia, mas não tem nada que represente nós, aí sentimos que faltava alguma coisa”, desabafou Mirella Camurça ao falar sobre a necessidade que sentiu de trazer o tema para dentro da escola.

Romantização do jeito "favelado de ser"?

Como parte do projeto, as sete estudantes realizaram um ensaio fotográfico na praça do bairro, no Acaracuzinho. O cenário é um marcador periférico. É um espaço pulsante de cultura, estilos, encontros e principalmente de resgate, seja pela juventude ou pelo brincar. Também é um espaço onde a criminalidade é constante, mas, ao mesmo tempo, é um refúgio da agitação do dia a dia para a comunidade da região.

Para a professora Jô Araújo, o trabalho tem um papel fundamental para os alunos da escola, pois ele mostra como os jovens podem enxergar a sua comunidade para além das criminalidades e inseguranças.

“Pela primeira vez, eu vi um esforço deles de falarem de algo positivo, que é como essa meninada se veste, que infelizmente ainda é muito criminalizado, porque se você bota um (óculos) juliet, uma blusinha, uma sainha curta as pessoas acham que você está romantizando o jeito ‘favelado de ser’, e isso é extremamente perigoso, você acaba naturalizando os preconceitos e contribuindo para que ele se reproduza”, completou a professora de sociologia.

O projeto acabou ultrapassando os muros da escola, alcançando universidades e até a própria comunidade, espaços esses que eram inimagináveis para as alunas quando começaram lá em 2023.

Seu sucesso na feira de ciências da escola conquistou o 1° lugar, resultando em sua ida à feira de ciências regional. Com pouco tempo depois estavam na Universidade Estadual do Ceará (Uece) participando de uma mesa de debate sobre Juventude e Diversidade escolar, também falando sobre “Moda Periférica”, e na Universidade Federal do Ceará (UFC) para participar do primeiro encontro de professores, sendo o único grupo presente a falar sobre escola a partir da perspectiva dos estudantes de ensino médio, todos os outros eram universitários.

Outro grande feito para o grupo foi o desfile de moda realizado em 2023 dentro da escola, após a apresentação do projeto na feira de ciências, em que todos os alunos que quisessem poderiam participar voluntariamente, reunindo a gestão da instituição e personalidades da Crede, Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação. O momento foi um recado dos alunos de que a escola é um espaço da diversidade e de que é preciso acolher os diversos estilos.

“Elas fizeram o desfile Moda Periférica na escola e foi incrível. Os alunos que não desfilam normalmente se sentiram à vontade para desfilar. Então você tinha meninas e meninos gordos, magros, negros. Tivemos também uma aluna trans, que pela primeira vez desfilou como mulher na escola”, celebra Jô Araújo.

O verso “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, cantado por uma aluna durante o desfile, resume a essência de todo projeto: o desejo de liberdade, autoaceitação e pertencimento. Todos os outros estudantes presentes no momento cantavam e pulavam juntos.

Após o desfile, foi realizada uma roda de conversa com todos os estudantes que participaram do momento. Durante a troca de experiências, os alunos comentavam: “Tia, para mim foi um exercício de amor-próprio, porque eu não me via como uma pessoa bonita para estar desfilando”, conta Jô Araújo.

“Muitos símbolos na periferia são muitos ligados à criminalidade, como a juliet, a kenner, cyclone e short tactel. São partes da indumentária que, quando você vê uma pessoa periférica usando, é comumente ligada à marginalidade”, afirmou Allana Sofia.

Na feira de ciências da escola deste ano, o “Moda Periférica” ampliou suas discussões e trouxe temas como “os desafios que as mulheres periféricas enfrentam dentro da arte”, trazendo como personagens a estudante de moda e também orientadora do grupo, Allana Sofia; a CEO da marca Mancuda, Nair Beatriz; a escritora Mona Lisa e a banda Batuque de Mulher.

O futuro do Moda Periférica 

As estudantes do trabalho acadêmico ressaltam a importância que o trabalho tem de perpetuar dentro do espaço escolar. Em 2024, elas se formam no ensino médio e seguem suas trajetórias por outros caminhos, deixando um legado de resistência, criatividade e esperança para quem fica e futuras gerações.

“O Moda Periférica, para mim, é uma possibilidade da gente estar mais presente na educação e mostrar que a educação também é revolucionária. A gente pode pensar não só usando matemática e ciências da natureza, a gente pode fazer isso de outra forma, usando temas sociais”, afirmou Mirella Camurça.

“O projeto moda periférica é uma forma de abraçar todo mundo, quem é mais tímido, quem é mais extrovertido, quem é gordo, quem é magro, alto, baixo, é dar voz a ela, mostrar quem realmente ela é”, desabafou entusiasmada Vitoria Queiroz.

Carlindo Bezerra da Silva, diretor da escola estadual José Milton de Vasconcelos Dias, ressalta as ações e projetos que a instituição fomenta relativos ao universo da criatividade.

“Desde 2018, quando iniciamos a gestão na escola, vários projetos já foram desenvolvidos na escola. Tais como: Flertando com a Literatura, Aluno Leitor, Dança e Arte, Aulas de Música etc. Porém, com o período da pandemia e mudanças no currículo a partir do novo ensino médio alguns desses projetos deram uma parada. Mas, aos poucos estamos retornando a realização desses projetos e de novos que têm surgido ao longo dos últimos anos, como alunos leitores (projeto do Centro de Multimeios) e Moda Periférica (projeto da professora Jô de sociologia)”, afirmou Carlindo Bezerra.

Em relação à “Moda Periférica”, Carlindo explicou como a gestão trabalhou em relação ao apoio do projeto. “Sempre que a gestão é procurada para contribuir com qualquer projeto escolar, seja cultural, esportivo, cognitivo, fazemos o possível para apoiar e contribuir”.

“Todos sabemos que os recursos públicos obedecem a normas e regras muito claras expressas na legislação. Daí, muitas vezes a gestão e os professores têm que desembolsar ajuda do próprio bolso para que nossos alunos transcendam o espaço escolar. Mas o fazemos com muita satisfação e amor”, completou Carlindo.

Sobre a possibilidade de apoio e ampliação do projeto, O POVO entrou em contato com a Secretaria da Cultura do Ceará (Seduc), mas não obteve retorno até a publicação deste conteúdo.

Com a saída das sete estudantes da escola este ano, será que o projeto “Moda Periférica” ainda existirá ou será apenas uma lembrança? Para a professora Jô Araújo, essa ideia tem que continuar na escola e ampliar cada vez mais suas discussões, pois serve como um material vivo de exercício de autoconhecimento e amor-próprio. “Educação e mudança só se fazem com incômodo”, finalizou Jô.

Como diz a editora-chefe da revista Vogue, Anna Wintour. “Moda não é sobre escolher roupas para se adequar às demandas dos outros. Moda é sobre saber quem você é e declarar quem deseja ser”.

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