Cannes 2024: filmes sobre Lula e Donald Trump viajam no tempo

Em Cannes, enquanto Oliver Stone documenta sua visão compacta sobre o presidente Lula, o iraniano Ali Abbasi ficciona o ex-presidente dos EUA na ironia de sua canalhice

Na saída da Sala Buñuel, uma repórter francesa me abordou perguntando se eu poderia dar minhas primeiras impressões sobre “Lula”, documentário de Oliver Stone e Rob Wilson que estava sendo exibido pela segunda vez em meio a disputa por ingressos no 77º Festival de Cannes.

Fui pego de surpresa, mas o fato de ela ser de outro país me fez pensar no começo da resposta: “Eu sou brasileiro, então nada nesse filme é novo para mim”.

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Vencedor de três Oscars, Oliver Stone vem mantendo sua tradição de filmes políticos, já tendo falado sobre Richard Nixon, George W. Bush, John F. Kennedy, Vladimir Putin e até Fidel Castro.

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Em 2016, lançou a ficção “Snowden: Herói ou Traidor” sobre o ex-agente da CIA que, inclusive, é citado por Glenn Greenwald em entrevista para seu novo filme “Lula” — comparando-o com o hacker da Vaza Jato, Walter Delgatti Neto, por “ter mudado o destino de uma nação”.

Ao longo dos curtos 90 minutos, Stone e Wilson não tentam criar nada especialmente novo, preenchendo grande parte do filme com imagens de arquivo da própria mídia brasileira, que cobriu exaustivamente cada passo dos escândalos e da glória de Lula — a prisão, a soltura, a campanha, os debates e a eleição apoteótica.

Os autores, porém, têm um visível reconhecimento da dimensão que seu personagem tem, tanto para o Brasil quanto para a política do mundo; por vezes, criando alguns comparativos para tornar a discussão mais didática.

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No presente, a conversa com Lula acontece meses antes das eleições de 2022. Despojado e claramente à vontade com o cineasta, repete pontos de sua história e contextos sobre Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro, que também ouvimos quando ele estava em campanha.

O que talvez exista de mais inédito seja sua percepção sobre George W. Bush ter tratado melhor o Brasil do que Barack Obama e sua contundente afirmação de que a Lava-Jato começou nos EUA.

A narrativa tenta dar conta da infância até o momento em que chega pela terceira vez à presidência do Brasil, resumindo muito dos percalços e das consequências para criar uma lógica mais poética. Ao mesmo tempo que pode soar cacofônico para nós, é perceptível o quanto o projeto sabe usar isso para o seu público-alvo, estrangeiro, que sabe pouco ou quase nada de Lula.

Nesse círculo, o filme pode ser de fato uma introdução incisiva, mesmo que não proponha debates e contradições, dando apenas o panorama amplo da influência que esse líder tem sobre as pessoas – inclusive sobre Stone, que é claramente um admirador de sua figura.

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No fim do dia, fui parar num lado avesso. Se o documentário “Lula” tenta honrar um legado, a ficção “The Apprentice” tenta sujar um ainda mais. Dirigido pelo iraniano Ali Abbasi, “O Aprendiz” – em tradução literal – volta ao tempo em que Donald Trump ainda estava construindo seu luxuoso império americano ao lado do impiedoso advogado Roy Cohn.

De antemão, tudo nesse projeto assusta – por que existe uma ficção sobre a ascensão de Trump? E por que esse filme não tem um diretor americano? E por que está estreando em Cannes?

“O segredo é nunca admitir que foi derrotado”, revela Roy para um Trump ainda jovem, desarmado de sua malícia no universo dos negócios. A plateia riu, claro, pela referência imediata ao comportamento do ex-presidente quando perdeu as eleições em 2020 para Joe Biden, chegando a declarar que havia ganhado por uma “grande margem”.

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A primeira grande surpresa é que diante da ironia, que é a mera existência desse filme, Abbasi decide filmar sua história de um jeito divertido, com muita música e sem enquadramentos sisudos ou documentais. É um filme solto e até mesmo “brincalhão”, zombando do comportamento de Trump ao mesmo tempo em que perigosamente o torna engraçado.

Vencedor do último Festival de Berlim e astro até do Universo Marvel, Sebastian Stan aceita esse personagem espinhoso com um compromisso assustador. Esperei que fosse ver apenas uma caricatura fajuta, mas me deparei com um ator encarando sua mimética com seriedade.

Os gestos com a boca, os olhares e até o caminhado — há uma cena em que ele está gritando e gesticulando numa mesa e Sebastian simplesmente desaparece. Do outro lado da balança, Roy Cohn é vivido por Jeremy Strong com uma graça mais constante que nos leva a imaginá-lo na reencarnação de Logan Roy, pai demoníaco de seu outro personagem na série “Succession”.

O filme começa com um aspecto bastante bobo e vai ganhando gravidade à medida em que Trump vai criando orgulho de sua própria canalhice. Mesmo que seu recorte temporal seja bem específico, o roteiro de Gabriel Sherman solta suas piadas sobre as tolices que viriam a elegê-lo presidente dos EUA.

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Lado a lado, “The Apprentice” e “Lula” são oposições até engraçadas, mas que parecem dividir pontos de partida parecidos: seja com desprezo ou admiração, Stone e Abbasi só fizeram esses filmes porque, antes de qualquer segundo a ser gravado, já tinham imagens muito bem definidas sobre quem são esses homens e quais transformações lançaram ao mundo.

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