Cannes 2024: Romênia e Zâmbia trazem retratos de violência familiar

No primeiro dia da cobertura exclusiva do O POVO no 77º Festival Internacional de Cinema de Cannes, um mergulho nas emoções opostas de Emanuel Parvu e Rungano Nyoni

“Ele tomou a vacina da covid-19?”, pergunta o padre em um dos pontos do seu checklist para entender por que Adi, um garoto de 17 anos de idade, prefere “beijar garotos”.

Causando risadas nas mais de duas mil pessoas presentes no Grand Théâtre Lumière, essa fala foi o momento em que lembrei de não estar assistindo a um filme de vinte anos atrás, mas bastante novo, sendo literalmente exibido pela primeira vez naquele momento.

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Digo isso porque o romeno “Trei Kilometri Pana La Capatul Lumii” – “Três Quilômetros para o Fim do Mundo”, em tradução livre – é um filme tão frio e repetitivo diante da gravidade de seu tema que a intenção crítica de sua abordagem se torna pálida.

Na história, Adi vê sua vida virada de cabeça para baixo quando dois garotos o espancam na rua e seus pais buscam não só encontrar os autores do crime, mas o seu motivo. Nesse ponto, o roteiro do romeno Emanuel Parvu é esperto porque logo se descobre os responsáveis, mas a vítima, de repente, vira o vilão.

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As autoridades do pequeno vilarejo, inclusive seus próprios pais, sofrem muito mais com a descoberta da sexualidade do garoto do que com o crime. Em dado momento, o policial sugere que a queixa seja retirada para que o assunto não se espalhe.

O filme se engasga porque não encontra nesse conflito nada que o chafurde ao mostrar tudo sempre de forma direta, como se construísse uma crueldade chocante ao tornar o garoto apenas um saco de pancadas, sem reação ou qualquer subjetividade que o torne mais real.

O personagem do padre como representante da intolerância mira na ironia, mas o faz de forma rasa, assim como os pais interpretados por Laura Vasiliu e Bogdan Dumitrache que nunca convencem nos seus extremos.

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Da Zâmbia, “Tornando-se uma Galinha-d'Angola” mostra violências esquecidas

Como num poema sem rimas, o segundo filme do dia se encaixou pelos vazios. Dirigido pela zambiana Rungano Nyoni, “On Becoming a Guinea Fowl” – “Tornando-se uma Galinha-d'Angola”, em tradução livre –, é um grande contraponto no mesmo ponto de partida: a violência que está escondida dentro da família até que se coloque à prova.

O filme começa quando Shula (Susan Chardy) encontra seu tio morto, estirado na estrada, sem qualquer explicação. Ele simplesmente está lá. Quando ela chega perto do corpo, a imagem salta e vemos Shula em sua versão criança, mas na mesma rua, vendo o mesmo corpo. Naquele momento ainda não entendemos aquela imagem completamente, mas ela aos poucos vai ganhando significado.

A partir dessa morte inesperada, que faz com que sua extensa família tenha que se reunir para o funeral, Shula se vê refém da ficção da sua memória para tentar digerir sua indiferença em relação à morte daquele homem.

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“Você não contou para o papai?”, pergunta para sua mãe que sabe há anos da violência que ele tinha cometido à sua filha quando criança, mas aceitou que “não tinha muito a ser feito”.

Diante dessa mágoa nunca encarada, a diretora nos hipnotiza ao criar seu próprio fluxo de delírio e tensão para acessar o trauma, às vezes áspero e confuso, mas sempre interessado em fugir do que é óbvio.

Não há só discurso na tela de Rungano, como o romeno acreditava se bastar, mas há também imagens que são em si sentimentos – como a cena em que o dormitório surge alagado, as tias que dormem escondidas numa piscina vazia e a máscara de festa que ironiza o luto.

Esse confronto até nos lembra seu longa anterior “Eu Não Sou uma Bruxa”, mas aqui ela se desafia numa perspectiva de planos mais fechados e locações noturnas.

Por mais que o choque de filmes tão diferentes possa soar estranho, chego ao fim do dia satisfeito com o primeiro passo porque Cannes, com programação de pelo menos 70 sessões por dia, faz de tudo para que você se surpreenda – seja positiva ou negativamente.

Para além de cada grande planeta de enorme gravidade, como os badalados da edição até agora “Megalopolis”, de Francis Ford Coppola, e “Furiosa”, de George Miller, há os que nos pegam pelo pescoço fazendo menos barulho. O grito final de “Tornando-se uma Galinha d’angola”, por exemplo, não vai sumir de mim tão cedo.

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