Como Beyoncé reivindicou as raízes negras da música country
Beyoncé conquista o pódio nas paradas country da Billboard, desafiando as barreiras em um cenário majoritariamente branco. Feito gera debate sobre a representação negra na música dos EUA
00:04 | Fev. 28, 2024
Beyoncé se tornou a primeira mulher negra a alcançar o primeiro lugar no Hot Country Songs, o ranking da revista Billboard que mede a audiência do gênero nos EUA, com a estreia da música "Texas Hold 'Em". O outro single da cantora, "16 Carriages", lançado simultaneamente, estreou em 9º lugar no ranking country da Billboard.
As faixas fazem parte do próximo álbum de Beyoncé, intitulado "Act 2", com lançamento previsto para 29 de março, representando a segunda parte de uma trilogia. No álbum anterior, "Renaissance", Beyoncé reivindicou as origens negras do house, um gênero de música eletrônica dos anos 1980. Agora, parece que está dedicada a reivindicar a herança negra, também, no cenário country.
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Embora há décadas o cenário da música country seja amplamente dominado por artistas brancos – sobretudo homens –, é importante destacar que, como acontece em diversos gêneros populares, a raiz desse gênero nos Estados Unidos teve início com pessoas negras.
Tudo começa com o banjo
A história da música country tem suas raízes no banjo. Maria Juliana Figueredo Linhares, mestre em Música pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), explica que o banjo moderno evoluiu a partir de um instrumento da África Ocidental feito com cabaças, frutos esféricos e ocos, conhecido como Akonting.
Quando as pessoas foram escravizadas e transportadas da África para o continente americano, levaram seus instrumentos junto. Ao longo de 400 anos, elas desenvolveram sua própria música, incluindo hinos, espirituais e de trabalho.
"Antes de 1840, não há registros de pessoas não negras tocando banjo, mas, após esse ano, surge o primeiro relato de uma pessoa branca tocando o instrumento utilizando a prática "Blackface” ”, afirma Linhares.
Naquela época, nos Estados Unidos, pessoas brancas se envolviam em espetáculos conhecidos como menestréis . Esses espetáculos eram uma forma extremamente racista de entretenimento satírico, onde indivíduos brancos usavam a prática do "Blackface", pintando seus rostos de preto, para zombar de pessoas negras e de sua cultura.
Linhares destaca que, de maneira até inesperada, de uma sátira racista, o banjo se transformou em um instrumento apreciado pelo público branco.
Com o passar do tempo, o instrumento consolidou-se como um elemento característico no cenário musical country, deixando sua marca em diversas gravações e transmissões.
Na indústria fonográfica, a partir da década de 1920, as grandes gravadoras queriam comercializar as músicas country, mas encontrariam dificuldades se o gênero incluísse artistas negros – na época, o país vivia a segregação racial sustentada pelas leis de Jim Crow. Por conta disso, as gravadoras dividiram os artistas e o público em duas categorias:
"Hillbilly", posteriormente denominada música country, direcionada especificamente para audiências brancas e produzida por artistas brancos; e "Race", produzida por artistas negros para o público negro, posteriormente evoluindo para o R&B, sendo comercializada como música "Negra".
Isso levou a uma mudança na percepção do country, que passou a ser promovida como exclusivamente "música branca". Nesse processo, a contribuição significativa de artistas negros foi efetivamente apagada.
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O racismo no Country
A segregação na música country persiste até os dias de hoje, refletida em muitas das práticas de venda, marketing, distribuição e abordagem na mídia, com raras exceções.
Músicos negros enfrentam desafios ao tentar migrar para esse gênero musical. Mesmo com o sucesso das novas músicas de Beyoncé, a rádio country KYKC em Oklahoma optou por excluí-las de sua programação, justificando: "Não tocamos Beyoncé na KYKC, porque somos uma estação de música country."
Em 2019, a música "Old Town Road", um rap country que ganhou um Grammy, do artista negro de Lil Nas X, entrou nas paradas country da Billboard, mas foi retirada posteriormente. A explicação dada pela revista Rolling Stone foi que a música não tinha elementos suficientes do country atual. Na mesma época, alguns fãs de country criticaram Lil Nas X, alegando "apropriação cultural" devido ao uso de um chapéu de cowboy.
"Isso destaca como a música country se tornou tão padronizada que sua diversidade histórica foi praticamente apagada, a ponto de gerar questionamentos sobre por que uma pessoa negra estaria envolvida nesse gênero musical, incluindo indagações sobre o uso de um chapéu de cowboy”, explica Richard M. Cooper, co-coordenador de Estudos Africanos e Afro-Americanos na Universidade de Wiedener nos Estados Unidos.
A limitação imposta às contribuições negras em todos os campos e estilos musicais é um reflexo do racismo estrutural. Segundo Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), a falta de pessoas negras em posições de liderança leva a situações em que artistas globalmente reconhecidos, como Beyoncé, têm sua produção limitada. "Essa postura não é justificável do ponto de vista do mercado, considerando o alcance e sucesso que Beyoncé tem. No entanto, o controle exercido por pessoas brancas, racistas, limita esse potencial completo.”
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A passagem de artistas brancos para gêneros musicais predominantemente liderados por artistas negros, como o hip-hop, normalmente não causa tanta controvérsia e discussão em comparação com a transição oposta.
"O privilégio facilita a mobilidade. Os brancos não enfrentam as mesmas limitações ou obstáculos devido ao seu status privilegiado, o que permite, sem questionamentos, explorar, experimentar e alcançar domínio", conclui Cooper.
O sucesso de Beyoncé no country é simbólico
Em um gênero frequentemente marcado por controvérsias em relação a artistas negros, ter Beyoncé no topo das paradas country representa uma conquista importante no mundo musical. Para Linhares, isso é uma quebra de barreiras, em que a cantora recupera uma cultura que foi apropriada. Essa ação também tem implicações políticas, especialmente diante dos acontecimentos recentes no cenário country. Em 2023, as três músicas mais populares nos Estados Unidos eram de artistas ligados a alegações de racismo.
O feito de Beyoncé também é relevante por outro motivo: na história da música country, as mulheres negras foram praticamente excluídas. Isso ocorre principalmente porque elas, enfrentando tanto o racismo quanto o sexismo, não tiveram espaço para ingressar na indústria. Embora tenha havido um aumento no número de artistas negras no country na última década, elas ainda enfrentam discriminação.
O sucesso de Beyoncé na quebra de recordes com sua música provoca reflexões e debates. "Quando se observa uma mulher negra no topo, produzindo, sendo famosa e demonstrando competência musical em diversos gêneros, isso envia uma mensagem ao mundo. Mostra que há outras mulheres negras e homens negros capazes de fazer o mesmo, desafiando a desumanização de todo um povo”, afirma Oliveira.
Richard M. Cooper espera que isso ajude as pessoas a se conectar, se envolver e entender umas às outras, sem a lente racial ou racista que temos testemunhado.
E se há alguém capaz de fazer isso, com a fama, presença e influência que ela tem, essa pessoa é a Beyoncé.