Zé Celso: Ricardo Guilherme reflete trajetória e transgressão do dramaturgo

Teatrólogo cearense Ricardo Guilherme apresenta visão sobre um dos maiores dramaturgos do teatro brasileiro, José Celso Martinez Corrêa

O teatrólogo, diretor e ator cearense Ricardo Guilherme narra o primeiro encontro com a arte de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, um dos maiores dramaturgos brasileiros.

Em sua experiência, Ricardo reflete as obras do artista que morreu nesta quinta-feira, 6, por complicações decorrentes de um incêndio que atingiu seu apartamento no bairro Paraíso, Zona Sul da capital paulista, na madrugada desta terça-feira, 4.

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A Bigorna do Oficina

Quando José Celso Martinez Corrêa, em 1958, ia estrear em teatro, exigiram dele um nome de guerra, curto, de fácil assimilação, mas ele insistiu para que assimilassem o seu, por completo, e justificava: quem vai fazer teatro somos nós quatro: o José, o Celso, o Martinez e o Corrêa. Era a estreia de quatro rebeldes que pretendiam se entregar ao teatro por inteiro, num só corpo mas com a alma povoada de múltiplas facetas.

E sua trajetória desde então até hoje tem ampliado as quatro entidades que José Celso Martinez Corrêa encarna, pois nele o verbo de Mário de Andrade se fez carne, quando o poeta assim se definiu: eu não sou um, sou quatrocentos, sou quatrocentos e cinquenta. É a encarnação desta multiplicidade que Zé Celso incorpora.

Esse Zé, Zé de excelso excesso, racional/sensorial, sempre antenado com a revolução das vanguardas europeias e norte-americanas, rastreou as poéticas de Stanislavski, Artaud, Brecht e Grotovski, filtrando e reprocessando informações, para criar uma poética própria, culturalmente antropofágica mas teatralmente autofágica e politicamente revolucionária, de difícil digestão tanto para a direita quanto para a esquerda da geração pré e pós-AI-5.

Nosso Zé é esse diretor incendiário que com a encenação de "O Rei da Vela", texto de Oswald de Andrade escrito em 1937 e montado trinta anos depois, influenciou e foi influenciado pela Tropicália e pelo cinema de Gláuber Rocha.

O Teatro do Grupo Oficina se contrapôs ao refinamento colonizado da Companhia Teatro Brasileiro de Comédia, menina dos olhos da elite paulistana quatrocentona, e também divergiu, em estratégia, até mesmo de grupos ideologicamente engajados na luta contra o golpe militar de 1964.

Nos anos 1960 o Oficina libertou o teatro da ditadura do mercado, rompeu com uma concepção judaico-cristã da cultura brasileira, carnavalizou a razão dialética de Brecht, subverteu a alienação-zona sul da carioca bossa-nova e profanou o escotismo dos nacionalistas, enfrentando os patrulhamentos ideológicos de todos os matizes. 

A bigorna de Zé Celso foi e é capaz de abrasileirar, sensualizar, atualizar, desmitificar e reescrever cenicamente os autores que encena, encarando os dramaturgos como parceiros de uma criação cuja postura transgride o conceito de fidelidade autoral para transformar o fenômeno teatral não tão-somente num exercício de contemplação estética, mas num acontecimento, num ato de relação interpessoal na qual os atores e a platéia vivem uma celebração dionisíaca.

Zé: personalidade histórica de um teatro contraditoriamente ritualístico e anárquico que herda de Nelson Rodrigues a apologia da cafonice e do mau gosto, e instaura a alquimia de mixar e transubstanciar a espetacularidades do Chacrinha, o desbunde da contracultura e a militância progressista dos chamados anos de chumbo.

As performances do Grupo Oficina revelam ao espectador os ritos de passagem de um alquimista cujo impulso de voracidade sobre si mesmo e sobre as circunstâncias de seu percurso histórico, fez do criador do Teatro Oficina, a emblematização de um processo alquímico em que ele, Zé Celso, mais do que um manipulador, é as próprias substâncias manipuladas e transubstanciadas. Zé, portanto, espetaculariza essa alquimia. 

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