Zé Celso em Quixeramobim: peça do diretor chocou o público cearense

O diretor e dramaturgo Zé Celso realizou uma montagem de "Os Sertões" em Quixeramobim, no Ceará, em 2007; evento atraiu multidões

Uma das personalidades mais importantes do teatro brasileiro, o diretor e dramaturgo Zé Celso chegou a agitar a cidade de Quixeramobim, no interior cearense, no final de 2007. O criador do Teatro Oficina levou ao público local a montagem de “Os Sertões”, baseada na obra de Euclides da Cunha. Zé Celso faleceu nesta quinta-feira, 6.

Na época da apresentação, mais de 70 profissionais atuaram no palco do Clube Recreativo, mobilizando milhares de pessoas para conferir a peça. A montagem durou 30 horas, sendo realizada de 14 a 18 de novembro de 2007, e contou com músicos, estudantes, dançarinos e atores, entre adultos e adolescentes. O investimento foi grande: foram cinco toneladas em 2,5 mil peças de figurino, sendo necessários R$ 400 mil para a produção.

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Casas e fazendas foram alugadas para receber tamanha plateia que se aproximava para conferir a montagem. O trabalho foi baseado no livro “Os Sertões”, que narra os acontecimentos da Guerra de Canudos, marco histórico comandado por Antônio Conselheiro, nascido em Quixeramobim.

Em 11 de outubro daquele ano, o site do Teatro Oficina anunciou a atração e os destaques envolvidos no evento: “A meta da organização é apresentar ‘Os Sertões’ a um público de 1.500 espectadores em cada uma das cinco noites. Durante o período, Antônio Conselheiro será lembrado ainda em mostras de filmes e debates”.

O Clube Recreativo também foi reformado para receber a réplica do prédio do Teatro Oficina. A produção foi aguardada com tanta expectativa que Quixadá, cidade vizinha, estaria disponível para hospedar 300 pessoas. A equipe da montagem também disponibilizou frota de ônibus para o traslado de Fortaleza a Quixeramobim nos cinco dias de apresentação.

“Uma experiência extraordinária de conexão com a cidade”

A ida de Zé Celso e do Teatro Oficina à Quixeramobim tornou-se um marco não apenas pela representatividade da obra do diretor e pela importância de Antônio Conselheiro para o município. Devido à grandiosidade da peça e da relevância dos envolvidos, trazer a produção para o interior cearense era muito caro - mas a realização do sonho foi possível diante da mobilização gerada.

Uma das pessoas responsáveis pela campanha para trazer Zé Celso ao Ceará foi o repórter, crítico e pesquisador de teatro Magela Lima, ex-jornalista do O POVO. Na época, ele trabalhava no jornal Diário do Nordeste e lembra como “Os Sertões” causou entusiasmo em profissionais do teatro, habitantes de Quixeramobim, imprensa e admiradores do trabalho do dramaturgo paulista.

“Era um marco do teatro brasileiro, talvez o espetáculo mais importante dos anos 2000 para cá. A minha geração de teatro se ressentia muito de um assunto envolvendo um personagem cearense não chegar ao Estado”, recorda Magela. Ele chegou a acompanhar pessoalmente Zé Celso durante sua viagem ao Interior.

Com o tempo, acabou virando seu amigo. Ele aponta a reação do público que aguardava a apresentação: “A gente estava em êxtase, porque era como se fosse um gol de Copa do Mundo. A cidade toda participou. Foi uma experiência extraordinária de envolvimento e de conexão com a cidade”.

Uma das características da peça era a possibilidade de interação com a plateia, outro diferencial construído por Zé Celso. Magela destaca a importância do diretor para o teatro brasileiro e a influência de seu trabalho no público que o assistia: “O Zé carregava e vai carregar para sempre a história do teatro brasileiro com ele. É impossível você ver um espetáculo do Teatro da Oficina e não sair mais curioso, sobretudo porque o Zé acreditava que o melhor do teatro não era ver, era fazer. O público comum acaba se envolvendo e querendo participar de alguma forma”.

“O público fazia parte do espetáculo”

Quem também acompanhou presencialmente o espetáculo foi a jornalista Angélica Feitosa, que trabalhou no O POVO de 2008 a 2021. “Eu fiquei impactada com a liberdade e a dramaturgia do Zé Celso em palco. Ele provocava a plateia. O público fazia parte do espetáculo também, tanto que em alguns momentos eu até ficava com medo de interagir”, revela.

Angélica já tinha experiência em cobrir teatro, mas nunca tinha assistido a um espetáculo como “Os Sertões”. Para ela, foi muito impactante ter assistido à peça em Quixeramobim. “Acho que a palavra é ‘experimentação’. Ele vinha com uma vontade de renovar. Ele provocava os atores, o público, criou um teatro mais sensorial em que, por exemplo, as pessoas davam as mãos e faziam uma ciranda”, indica.

Outro ponto que se destaca na trajetória de Zé Celso é, para a também estudante de mestrado em Sociologia, seu espírito contestador e “à frente do seu tempo”: “Os espetáculos fazem você pensar e raciocinar o tempo inteiro sobre questões de gênero, por exemplo. Ele fazia você se questionar e as peças são libertadoras. ‘Os Sertões’ foi o melhor espetáculo de teatro que eu já vi na vida”.

O histórico Zé Celso

“O maior teatrólogo brasileiro”: é assim que Neto Camorim define Zé Celso. Historiador e professor da rede pública estadual, Neto é integrante da ONG Iphanaq, que esteve envolvida na produção de “Os Sertões” em Quixeramobim. Ele reforça como a obra do diretor dialoga com grandes temas da história do Brasil.

“O que Zé Celso faz com a peça, transformando a obra de Euclides da Cunha para o teatro, é de uma beleza e de uma profundidade extraordinárias”, comenta. A análise se estende a outros espetáculos, como “O Banquete”. A partir de suas peças, ele convidava o público a refletir sobre temas como preconceito, racismo, homofobia, reforma agrária e direitos humanos.

Foi por causa do dramaturgo, aliás, que Neto Camorim foi ao teatro pela primeira vez. Sem dúvidas, um nome muito importante para a história do Brasil: “Ele vai deixar um legado imenso. Ele conseguiu colocar na sua arte assuntos muito caros e mal resolvidos até hoje, dentro desse País tão marcado pela exclusão, pela violência, pela opressão e pela censura”.

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