Coluna Vanessa Passos: Escrevendo a vida
O cotidiano é um solo fértil para a ficçãoEstou em turnê e viajei de ônibus para Curitiba para o lançamento do meu livro. Doze horas de viagem. Vomitei nas primeiras horas, como já esperava, assim que o ônibus começou a fazer curvas. Logo depois do transtorno, fizemos uma parada num restaurante. Foi quando tive a chance de conhecer um homem simpático que também viajava comigo. Sentamos juntos para almoçar. Dois nordestinos se conhecem de longe. E quando se encontram, se sentem em casa.
Escolhemos um PF. E antes de começar a comer, ele disse que gostava de comida assim, comida barata, que fazia a gente encher o bucho. Ele riu. Eu também. Me perguntou o que eu estava fazendo por aquelas bandas e se impressionou quando eu disse que eu era escritora e que estava morando em Porto Alegre para fazer o Pós-doutorado. E eu entendi o espanto. Não era só por eu ser jovem, é porque o estudo e o status que ele dá é usado muitas vezes para diminuir as pessoas.
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Sei disso na pele. Lembro-me de que, durante o Doutorado, ouvi um colega dizer que a partir de agora eu só poderia falar com quem estivesse no Doutorado, não mais com alunos da Graduação. Fico imaginando se ele me visse conversando com aquele homem que me confessou que não teve infância, trabalhou anos na roça e que era quase analfabeto. Ele certamente viraria o rosto. Contei um pouco disso pra ele e disse que essa arrogância tinha sido uns dos motivos que tinha me feito desistir de querer ser professora universitária.
Eu não queria passar o resto da minha vida transitando no meio de egos inflados, desse elitismo que não nos serve de nada, eu queria apenas ensinar e ajudar pessoas. Ele sorriu e vi que lhe faltava um dente. Depois me disse: "Você devia escrever sobre isso". Respondi que devia mesmo. E é o que eu estou fazendo. Por isso eu repito para os meus alunos de escrita: o cotidiano é um solo fértil para a ficção.
Aquele homem, que nunca havia pisado na universidade, soube aprender com a vida como ninguém. Numa das últimas conversas que tivemos, ele perguntou se eu dirigia. Eu respondi que tinha carteira de motorista, mas que tinha medo de dirigir. Ele respondeu: "Mas você precisa dirigir. Não é luxo, vai facilitar seu trabalho". Fez uma pausa e continuou: "Medo não serve pra nada. Você pega a coragem que teve pra escrever um livro, que deve ser muito mais difícil, e dirige, pronto. Você pode fazer o que você quiser". Não tenho dúvida de que isso não se aprende em colégio ou universidade nenhuma, é na vida.
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