Música e Política: Um século de fatos brasileiros e sua trilhas sonora
A música brasileira sempre está conectada à realidade de seu período. Nesta matéria, Vida&Arte convida o leitor a percorrer um século de momentos marcantes do cenário musical do Brasil
10:00 | Out. 01, 2022
A produção artística sempre está relacionada à realidade de seu período. Quando é feita com intenções de refletir sobre o momento e a realidade da sociedade, por exemplo, essas conexões podem ficar mais evidentes ao público. Mas até mesmo quando a crítica acerca do contexto sociopolítico não é o objetivo principal, é possível perceber como a arte é influenciada pela conjuntura da época.
Em referência à atual situação do Brasil, que passa pela primeira eleição presidencial após dois anos de pandemia e crise econômica, o Vida&Arte preparou uma linha do tempo que entrelaça música e política. Nesta matéria, os leitores acompanham um século da história e da cultura do País. Dos principais nomes do cenário musical brasileiro até as canções que se tornaram clássicas, veja o histórico dos últimos 100 anos.
1880 - 1900
Os acontecimentos na música brasileira entre os séculos XIX e XX têm poucos registros oficiais. Naquela época, não havia tantas possibilidades para catalogar as composições. Apesar disso, algumas pessoas foram eternizadas devido à grandiosidade de suas obras.
Uma delas é Chiquinha Gonzaga (1847 - 1935), compositora e maestrina responsável pela primeira marchinha de Carnaval. Filha de uma escrava com um militar, ela seguiu seu sonho nas artes quando o Brasil era um lugar hostil para mulheres, principalmente, negras.
Suas canções não tinham cunho político, mas sua própria trajetória pessoal era política: na adolescência, teve um casamento arranjado com um empresário, separou-se (o que era considerado um escândalo) e passou a viver com outro homem. Enquanto ninguém ousava se sustentar de música, ela dava aulas particulares e ganhava dinheiro com isso.
Ao estrear no Teatro Príncipe Imperial, ainda não havia nome no feminino para “maestro”. Como chamá-la? A imprensa da época não sabia responder a essa pergunta, e a população brasileira também não tinha a resposta.
Ela, inclusive, utilizou suas obras como forma de defender seus ideais políticos. Chiquinha Gonzaga vendia partituras e arrecadava fundos para a Confederação Abolicionista, organização que tinha o objetivo de pressionar o governo pelo fim da escravidão. Com o dinheiro que recebia, a maestrina ainda comprou a alforria de José Flauta, um escravo músico.
1910
As músicas brasileiras que se tornavam populares na década de 1910 não eram politizadas, mas foi neste período que ocorreu o início da ascensão de músicos negros. Um desses artistas era Eduardo das Neves (1874 - 1919), que foi palhaço, violonista, poeta, cantor e compositor.
Em suas valsas e modinhas, a temática era a campanha patriótica republicana e a política cotidiana. Porém, ele também usou seus versos para tratar sobre a população negra. Refletia, por exemplo, sobre as consequências das desigualdades raciais em um País recém-saído de um longo período de escravidão.
Suas letras destacavam a falta de oportunidades para os negros no mercado profissional e os problemas causados pelo racismo. Eduardo das Neves, entretanto, não se restringiu à questão da raça, porque se aprofundou nas relações de gênero.
1920
Foi na periferia carioca que surgiu o samba do Rio de Janeiro - que teria nascido na Praça da Onze, ponto em que descendentes de escravos se reuniam para eventos. Naquela época, também havia a casa da mãe de santo Tia Ciata, onde foi gravado o primeiro samba, “Pelo Telefone” (1960), de Donga e Mauro de Almeida.
Mesmo com a força da cultura dos afrodescendentes no Brasil, esses encontros não eram bem recebidos pela elite e pela mídia tradicional. Por causa disso, a polícia invadia esses espaços para acabar com as festas e os desfiles.
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1930
O fim da década de 1930 foi marcado pelo que ficou conhecido como “samba-exaltação”, que destacava a grandiosidade e os aspectos positivos do País. O que influenciou esse momento foi a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda por parte de Getúlio Vargas (1882 - 1954).
O órgão difundia a ideologia do Estado Novo e fazia propaganda sobre o governo. Um trabalho emblemático foi a canção “Aquarelas do Brasil”, de Ary Barroso, lançada em 1939.
A composição foi enviada a Walt Disney para se tornar a trilha sonora do desenho “Você Já Foi à Bahia?”. A produção audiovisual, realizada por um dos grandes nomes da animação mundial, era uma forma de aproximar os Estados Unidos do Brasil durante a segunda guerra mundial.
1940
Enquanto o Departamento de Imprensa e Propaganda ainda existia, até 1945, algumas músicas foram censuradas pelo órgão por causa de suas críticas à situação política do País.
Um dos exemplos é “O Bonde de São Januário”, de autoria de Wilson Batista (1913-1968) e Ataulfo Alves (1909-1969). A letra original dizia: “O bonde de São Januário/ leva mais um sócio otário/ só eu não vou trabalhar”. Mas essa parte foi mudada e passou a ser: “O Bonde de São Januário leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”.
Outra censura ocorreu com a marchinha de carnaval “Diabo sem rabo”, de Haroldo Lobo e Milton Oliveira (1910-1965). A composição tinha uma letra ambígua, que se opunha ao Estado Novo, e foi censurada por causa disso.
1950
Os anos 1950 foram marcados pelo governo de Juscelino Kubitschek (1902 - 1972), que apresentou um discurso desenvolvimentista, utilizou a campanha “50 anos em 5” e criou a nova capital, Brasília, para promover a ocupação do interior do Brasil.
Em uma época de relativa estabilidade política e econômica, de aceleração da industrialização e de urbanização, formou-se uma nova classe média. Parte da população obteve um maior poder aquisitivo e, por isso, entrou em circuitos culturais que antes não eram acessíveis.
Reflexo disso ocorreu na música, com a bossa nova. Com padrões que se relacionavam com o ideal cosmopolita da época, o ritmo incorporava elementos do samba e do jazz estadunidense.
Muitos consideravam “alienantes” as canções apresentadas por nomes como Vinícius de Moraes (1913-1980), João Gilberto (1931-2019) e Tom Jobim (1927-1994). Mas elas eram o símbolo das novas perspectivas da população brasileira, que via um Brasil repleto de possibilidades.
1960
É impossível falar sobre a década de 1960 e não abordar a ditadura militar (1964 - 1985). Sem liberdade de expressão e em meio a métodos de tortura com aqueles que se posicionavam contra o regime, os artistas viraram ferramentas de resistência. Muitos deles escreviam obras que ficaram conhecidas como “canções de protesto”.
Nas letras - às vezes, com críticas mais explícitas; outras vezes, com opiniões nas entrelinhas -, os cantores e compositores revelavam suas opiniões. Uma das produções mais emblemáticas é “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, que foi considerado um hino entre a resistência popular e estudantil. Por causa disso, o paraibano foi perseguido por militares e precisou se exilar.
Naquele mesmo período, também surgiu o movimento tropicalista, formado principalmente por artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Tom Zé, Torquato Neto e outros. O grupo apresentava uma inovação estética na música brasileira, com o objetivo de misturar as manifestações do Brasil com as de outros lugares do mundo.
Em um primeiro momento, a Tropicália foi vista como “alienante” por parte de vários militantes devido ao uso de referências de países como os Estados Unidos e a Inglaterra. Entretanto, suas obras traziam críticas à ditadura militar e à realidade do País.
1970
A década de 1970 foi um período importante para o mercado da música. Foi nessa época, por exemplo, que gravadoras começaram a se firmar no meio artístico. Cantores famosos passaram a escrever composições que se adaptassem à forma de consumo.
Muitos nomes se tornaram revelações nesse período, como Ivan Lins, João Bosco, Alceu Valença e Belchior (1946 - 2017). Outros já eram populares, como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Ao mesmo tempo que esses músicos tinham a liberdade de produzir algumas de suas canções da maneira que queriam, outras eram pensadas a partir da possibilidade de venda e inserção entre o público.
Mas alguns cantores não conseguiam se adaptar a esse formato. Era o caso de Raul Seixas (1945 - 1989), que virou uma representante de uma nova geração inconformada. Enquanto os jovens de 1960 passavam pela violência mais brutal da ditadura militar, eles também viram a economia crescer e tiveram a chance de buscar uma vida economicamente estável. Já a juventude da década de 1970 ainda enfrentava o cerceamento da liberdade de expressão e encaravam a instabilidade econômica.
Além disso, em 1979, uma canção se tornou símbolo do processo de redemocratização. Naquele ano, o então presidente João Batista de Figueiredo (1918 - 1999) sancionou a Lei da Anistia, que permitia que pessoas que haviam cometido crime político durante a ditadura militar pudessem retornar ao País. Assim, Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós (1943 - 1995) escreveram “Tô Voltando”, que entoava: “Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto/ Eu tô voltando/ Põe meia dúzia de Brahma pra gelar, muda a roupa de cama/ Eu tô voltando”. Sucesso na voz de Simone, o samba era pra ser só uma resposta às esposas de músicos que ficam dias esperando seus maridos voltarem das turnês, mas acabou se tornando um "Hino da Anistia".
1980
A música nacional na década de 1980 passava pela efervescência do rock, com o surgimento de bandas de destaque. Havia Os Paralamas do Sucesso, Titãs, Barão Vermelho, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii, Capital Inicial e outros.
Eles também faziam críticas e se conectavam com os anseios da população jovem. Nesta perspectiva Legião Urbana apresentou “Que País É Esse?” e cantou: “Terceiro mundo se for/ Piada no exterior/ Mas o Brasil vai ficar rico/ Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as alma/ Dos nossos índios num leilão/ Que país é esse?”.
Houve ainda o movimento das “Diretas Já”, que demandava eleições diretas para eleger o presidente. Várias letras faziam referência a isso, como “Não me venha com indireta”, de Noca da Portela e Ratinho de Pilares (1948 - 2010), que dizia: “Não me venha com indireta/ Que eu não aceito, não/ Eu não, eu não/ A moçada está inquieta/ Querendo uma solução/ E o meu povão/ Já não aguenta a dieta/ Que afeta o seu coração/ Se segura, meu irmão/ Que o negócio é uma direta/ A meta é a eleição”.
1990
Em 1990, o Brasil já estava em um período democrático depois de mais de duas décadas de ditadura militar. Porém, em um País repleto de desigualdades sociais, os problemas relacionados ao racismo, ao preconceito e à pobreza continuavam fortes.
Artistas, principalmente ligados ao Rap, tiveram ascensão na música com letras que abordavam os problemas estruturais da sociedade. Um deles foi o Racionais MC’s, formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay.
O grupo nasceu na periferia de São Paulo e não tinha recursos financeiros para elaborar grandes projetos. Apesar disso, desde o início, os quatro participavam de programas voltados para as comunidades pobres e abordavam assuntos como a violência policial.
Os trabalhos da banda evidenciam a condição da população negra nas periferias brasileiras. Algumas de suas produções de destaque na década foram “Holocausto Urbano” (1990), “Escolha o Seu Caminho” (1992), “Raio X Brasil” (1993) e “Sobrevivendo no Inferno” (1997).
2000-2010
Os primeiros anos do século XXI foram fortemente influenciados pelo rap nacional, que formou uma geração de artistas engajados politicamente e em causas sociais. Criolo, por exemplo, utilizou de sua popularidade para tratar de temáticas relevantes ao Brasil. Apesar de ser conhecido como rapper, também lançou um álbum de samba.
Um de seus trabalhos mais recentes é “Boca de Lobo”, em que critica: “É que a indústria da desgraça pro governo é um bom negócio/ Vende mais remédio, vende mais consórcio/ Vende até a mãe, dependendo do negócio/ Montesquieu padece, lotearam a sua fé/ Rap não é um prato aonde cê estica que cê quer/ É a caspa do capeta, é o medo que alimenta a besta/ Se três poder vira balcão, governo vira biqueira/ Olhe, essa é a máquina de matar pobre/ No Brasil, quem tem opinião, morre”.
Outro rapper é Emicida, que expõe uma série de problemas do País, como a violência policial, o racismo, a falta de oportunidades para a população pobre, o conservadorismo e mais temas. Com músicas engajadas, recentemente subiu ao palco do Rock in Rio para protestar contra o presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a apresentação: “Se estou vivo aqui, é porque o Racionais decidiu falar de política 30 anos atrás”.
2020
Com a proximidade das eleições presidenciais, a primeira após dois anos de pandemia, Chico César lançou a música “Bolsominions”. Na composição, critica os apoiadores do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, ao cantar: “Bolsominions são demônios/ Que saíram do inferninho/ Direto pro culto/ Pra brincar de amigo oculto/ Com satã num condomínio”. Devido ao seu posicionamento, cantor recebeu xingamentos nas redes sociais, mas se defendeu ao explicar que toda a sua obra é política.
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