Maria Firmina dos Reis, a primeira escritora negra do Brasil

Nascida há 200 anos, autora será a primeira negra homenageada pela Flip. Filha de ex-escrava, ela publicou em 1859 romance que retrata escravizados e suas relações amorosas, uma ousadia para a época
Autor DW Tipo Notícia

A organização da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) anunciou nesta semana o nome da escritora Maria Firmina dos Reis (1822-1917) como a homenageada da edição deste ano, a 20ª do evento. É um nome praticamente desconhecido do público, o que destoa dos escolhidos em anos anteriores – como Machado de Assis, Millôr Fernandes, Mário de Andrade, Clarice Lispector e, no ano passado, Elizabeth Bishop. Também é a primeira vez que uma mulher negra é homenageada.

Mas a decisão, exatamente no ano que marca o bicentenário do nascimento da escritora, tem razões que transcendem a própria literatura. Filha de uma escrava liberta – "mulata forra", no léxico da época – e, provavelmente, de um homem branco que era sócio do antigo dono de sua mãe, Firmina dos Reis entrou para a história como a primeira escritora negra e a primeira romancista do Brasil. Em 1859, ela publicou o livro Úrsula.

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"A iniciativa da Flip de homenageá-la neste ano ratifica o compromisso da feira de dar luz a nomes tão importantes para a história da nossa sociedade, trazendo a público pessoas que contribuíram significativamente para a história do país, mas que, por razões de ordem diversa, caíram no esquecimento", diz o professor Emerson Calil Rossetti, doutor em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua.

Em artigo publicado em 2021 no livro acadêmico Circulações Transculturais: Territórios, Representações, Imaginários, a escritora e crítica literária Marisa Lajolo, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, destaca o pioneirismo de Firmina dos Reis. Ela lembra que "este primeiro romance de uma escritora afro-brasileira […] e talvez também o primeiro romance brasileiro de autoria feminina ficou desconhecido por mais de 100 anos".

De acordo com Lajolo, enquanto a escritora era viva, sua obra "não circulou para muito além das fronteiras de seu estado natal [Maranhão], muito embora pesquisas recentes tenham encontrado resenhas do livro em jornais maranhenses".

Tanto abolicionista quanto feminista

Invisibilizada historicamente por seu gênero e sua condição social, há poucas informações sobre sua biografia – mesmo a data de nascimento, em 1822, não é completamente confirmada. Maranhense, ela acabou criada por uma tia. Em um tempo de parco acesso à educação, foi alfabetizada e, quando tinha 25 anos pleiteou uma vaga, em concurso, como "professora de primeiras letras" em uma vila do município de Guimarães. Foi aprovada.

Firmina dos Reis dedicou-se ao magistério por 35 anos, até se aposentar. Nunca se casou, nem teve filhos. Quanto tinha 54 anos, fundou, em um barracão, uma escola de alfabetização gratuita a crianças pobres, principalmente negras, e com acesso garantido às meninas. Por sua trajetória, ela é considerada tanto abolicionista quanto feminista.

Mas, para a literatura, o mais importante foi que em 1859 ela publicou o romance Úrsula, um livro que retrata escravizados e suas relações amorosas de forma humanizada, uma ousadia para a época. De acordo com uma pesquisa da área de literatura afro-brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais, a obra "possivelmente" é o mais antigo romance publicado por uma mulher negra na América Latina.

Quando foi publicado originalmente, o livro não tinha o nome de Maria Firmina dos Reis como autora. Conforme Lajolo explica, a capa de Úrsula registrava apenas que se tratava de um "romance original brasileiro" escrito por "uma maranhense". Os leitores eram informados, portanto, de que se tratava de uma obra feita por uma mulher – mas não podiam imaginar que era uma negra, filha de ex-escrava.

Isso é importante, lembra a professora Lajolo, se situarmos a configuração da população maranhense no século 19. O censo mais antigo, de 1872, mostra que no estado havia 284 mil habitantes "livres" e quase 75 mil escravizados.

Sua obra excede as questões estéticas

"É curioso e importante saber que, em 1859, já havia aqui uma mulher publicando romance em que a questão dos negros escravizados e subtraídos de seus direitos elementares ocupa o primeiro plano", pontua Rossetti. "Numa época como a nossa, em que tanto se discutem as minorias e cresce cada vez mais o interesse pela literatura afro-brasileira, ela é pioneira."

"E [sua importância] está além da literatura, porque sua obra excede naturalmente as questões estéticas e tem ressonância em outros segmentos, o que, com certeza, ajuda a explicar a condição de anonimato que lhe foi imposta", completa o professor.

Rossetti pontua que, mesmo entre os escritores consagrados, "foram poucos" os daquela época que "ousaram falar tão abertamente sobre temas que afligiam uma elite brasileira a quem não interessava esse debate".

Ele ainda ressalta que Firmina dos Reis envolveu-se com a causa da educação de crianças negras, "as quais, entendia ela, não podiam estar à margem da leitura e da escrita". Para Rossetti, a escritora foi "idealista, justiceira e corajosa".

Mulher além de seu tempo

Embora considerado o mais importante, Úrsula não foi o único livro da maranhense. Segundo registra o livro Escritoras Brasileiras do Século 19, ela ainda publicaria o romance Gupeva, o conto A Escrava, além de contos e poemas na imprensa maranhense.

A expectativa é que o resgate feito pela Flip aumente o interesse pela obra da escritora. "Há muita coisa a ser revelada sobre a percepção dessa grande mulher, além de seu tempo, e que agora está para nós, a quem cabe se dedicar à leitura e à pesquisa de seus textos", diz Rossetti. "Quais e quantas soluções poéticas encontrou essa mulher para nos apresentar aquele mundo que ela tão bem conhecia?"

O professor acredita que a Flip, com Firmina dos Reis, abra a "oportunidade de sermos melhores e, ainda a tempo, dar à literatura a chance de construir um mundo também melhor".

Em 2018, Maria Firmina dos Reis foi a homenageada da Festa Literária das Periferias (Flup), que ocorre no Rio de Janeiro. (Edison Veiga/ DW)

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