Coluna Vanessa Passos: o espanto de me descobrir negra num país racista

"Mas, Vanessa, esta coluna não é sobre escrita criativa?" Sim. "Então, por que esse tema?" Porque para escrever é preciso viver

13:38 | Ago. 06, 2022

Por: Vanessa Passos
Vanessa Passos é escritora e colunista de Escrita Criativa do Vida&Arte (foto: Divulgação)

Desde pequena vivi um processo de branqueamento. Ouvia da minha madrinha que eu não devia ficar muito no sol para não ficar preta. Ou que devia passar limão nas axilas para clarear o encardido. Quando era mais nova, observava o nariz da minha mãe e pensava: porque não puxei a ela e nasci com esse nariz afilhadinho? Por muito tempo, pensei em fazer uma rinoplastia. Mas a verdade é que tenho pavor de procedimento estético que envolva cirurgia, corte, sangue. E quando digo pavor, é medo mesmo.

Já crescida, meu cabelo que era cacheado foi ficando ondulado e decidi alisar. Mas, numa conversa com Kika Andrade, amiga escritora cearense que admiro muito, que participou do livro "Poetas Negras Brasileiras: uma antologia", organizada por Jarid Arraes, ela me confrontou: “Mas, Van, você é negra”. Eu sabia que não era branca. Mas passei a vida ouvindo que era morena, ou ainda, que era parda, a opção que sempre respondia nas pesquisas que participava em que precisava me identificar.

Conversamos por horas. E eu fui me descobrindo negra numa sociedade racista que sempre quis me branquear e apagar minhas marcas de negritude. Passei a me olhar com atenção e resgatar tudo isso. Meu cabelo ainda é liso. Mas passei a observar meus lábios grossos, minhas axilas que continuam encardidas (e não é sujeira), o bico dos meus seios que é roxo, e não rosinha, meu nariz que é largo. Foi difícil, mas bonito, resgatar a minha identidade perdida.

A primeira vez que tive coragem de assumir minha negritude foi para os meus pais, que também se espantaram ao descobrir, depois de mais de vinte anos de convivência, que tinham uma filha negra. É espantoso o que fazemos para nos proteger, sobretudo o que os pais fazem. Me recordo agora do conto “História de cor”, do meu livro A mulher mais amada do mundo: “‘Mãe, é tão ruim assim ser preta?’ Ela olhou para mim séria e respondeu: ‘Não teime comigo, minha filha. Ser branca dói menos’”.

E dói menos mesmo. Embora pessoas ainda afirmem que o racismo acabou, como o atual presidente Bolsonaro, que espero ansiosa que saia do poder, notícias como a do ataque aos filhos da atriz Giovanna Ewbank, Titi e Bless, num restaurante em Portugal, só nos mostram que ainda estamos bem longe dessa realidade. As crianças foram chamadas de “pretos imundos” e foram mandados voltar para o lugar de onde vieram, a África.

E essa é também uma das razões para que, na literatura contemporânea, haja mais narrativas com o racismo como pauta, além, é claro, de dar evidência à produção de escritoras e escritores negros no mercado literário, que por muito tempo sofreram um apagamento. Até porque, como disse Tzvetan Todorov, a literatura é uma das artes que mais possibilita a prática da alteridade, de se colocar no lugar do outro.

Finalizo esta coluna dizendo que é assustador me descobrir negra num país racista. Mais espantoso ainda é viver negando a própria identidade.

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Leia Também | Confira a coluna anterior de Vanessa Passos: o que há de autobiográfico em "A filha primitiva"

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