Crônica: Matilde Campilho, fim de ciclos e a Bienal de São Paulo

Em crônica, Diego Gregório aborda como viajou até São Paulo, durante a Bienal Internacional de São Paulo, para ter um livro assinado por Matilde Campilho

Esse ano aconteceu a 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que, para mim, foi a 1ª. Havia muita empolgação da minha parte: fui convidado para lançar meu livro por lá e vi na programação que haveria a presença da escritora Matilde Campilho. 600 pessoas eram esperadas em cada dia do evento, até a Xuxa estaria presente, mas eu só precisava ver uma pessoa, aquela autora portuguesa, e fechar definitivamente um ciclo que havia sido aberto há cinco anos, por causa de um livro vermelho nunca dedicado, o “Jóquei”, e daquele poema grifado, "eu seria capaz de atravessar a cidade de bicicleta para te ver dançar e isso diz muito sobre minha caixa torácica".

Contudo, a valorização da moeda estadunidense sobre o real e o aumento das passagens aéreas, somados à proximidade do evento, às contas de casa e a uma viagem recém-feita, o investimento parecia impossível naquele momento. Até que uma amiga me convidou para um job que renderia uma passagem área para a Terra da Garoa, com um detalhe: o voo seria cheio de escalas e conexões e eu levaria oito horas para chegar. Com esse tempo, em uma aeronave a 700km/h, eu conseguiria chegar em Portugal.

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Por fim, o dia da viagem chegou, enchi o coração com coragem e a mochila com o famigerado livro e parti para Sampa exatamente na quinta-feira, dia 7 de julho, seis dias depois do início da Bienal e exatamente no dia em que Matilde Campilho iria estar lá. Saí de Fortaleza, pousei em Recife, pouca turbulência, um episódio de Friends e até que finalmente cheguei ao meu quase destino, o Aeroporto de Congonhas. Pensei em pegar um táxi, mas o valor me fez desistir e chamar um Uber.

Eram 17 horas em ponto quando entrei em um HB20, o horário em que ela estaria começando a apresentação no pavilhão 6 da Bienal. Dentro do automóvel, a janela aberta, os prédios enormes daquela cidade que talvez um dia fosse a minha, lembrei de um trecho do livro que seguia tão mudo quanto eu em minha mochila: “a beleza é tudo que permanece". Fazia sentido, pensei.

Com em 1988, quando a artista performática Marina Abramovic, após o fim de um relacionamento de 12 anos com o também artista Ulay, resolveu partir para uma jornada para dizer adeus. Literalmente. Para encerrar a sua história, Marina e o ex-companheiro saíram cada um de uma extremidade da Muralha da China em direção ao outro.

A viagem durou 90 dias e 2.500 km percorridos e, quando se encontraram finalmente, disseram “adeus”. A muralha, assim como a vida, era um caminho novo a ser percorrido. Essa performance do fim rendeu o documentário "The Lovers (The Great Wall: Lovers at the Brink)" lindo, cheio de passagens poéticas e reflexões. “Fazia sentido”, pensei novamente.

Havia beleza em tudo isso e a beleza sobressai ao fim. Então, decidido a fechar o ciclo de um casamento de 5 anos, eu precisaria de algo que fosse tão bonito quanto foi o início, e, se Matilde estava lá quando começou, ela estaria comigo também no fim.

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Porém, ingenuamente acostumado ao trânsito de Fortaleza que flui bastante bem, imaginei que chegaria a tempo de encontrá-la ao menos ao fim de sua apresentação para resolver de vez a minha questão. Mas isso não foi possível. Se tivesse apostado no táxi, talvez, teria viajado pelo corredor dos ônibus e chegado a tempo, mas a economia que me renderia um vinho naquela noite me fez perder minha primeira chance de encontrar Matilde.

Cheguei à Bienal às 18h10min e pensei que seria difícil morar ali. Logo que entrei, me atentei às centenas de pessoas que passeavam pelos enormes corredores. Muitas carregavam várias sacolas cheias das mais variadas publicações, deveria ter meio milhão de pessoas ali que saíram de suas casas em plena quinta-feira e pagaram R$30 para disputar um lugar em filas imensas para comprar livros. Livros! Esse era o objeto de desejo de quem estava ali.

Essa constatação me emocionou a ponto de quase esquecer de minha missão pessoal, mas o encontro com a amiga cordelista cearense Julie Oliveira que lá estava me relembrou: “Matilde assinou 20 livros, eu era a 21ª e não teve jeito, ela não levantou também e nem sorriu”. Disse minha amiga, que com seus bonitos cabelos azuis, guardava de volta na bolsa os livros virgens Jóquei e o recém-lançado Flecha. Ambos da autora.

Não demorou muito para eu ficar sabendo que, depois de dois dias, eu teria uma nova chance. No sábado, 9 de julho, às 16 horas, Campilho estaria na Travessa, uma livraria classe média alta no bairro de Pinheiros, mas, como a jornada do herói é cheias de percalços, essa informação chocou-se imediatamente com outra: nessa mesma data e hora eu teria que executar o trabalho para qual fui contratado, a cobertura do show da médica cordelista, minha amiga querida, Paola Torres.

As horas que se seguiram até sábado foram intensas. Aquela cidade enorme e cinza cheia de novidades o tempo todo me lembrou a Grande Muralha que Marina percorreu. Eu estava a 2.939,7 km de casa e só pensava que é no movimento que a mudança existe e, por mais que se vá a um mesmo lugar 1000 vezes, na próxima vez que estivermos lá, tudo será diferente, inclusive a gente mesmo.

Quando chegou a hora marcada, lá estava eu, de câmera e celular nas mãos, e com o livro rente às minhas costas por dentro da mochila. Aquele livro que, durante cinco anos, nunca havia de fato sido meu. Que vez ou outra sumia da estante e reaparecia sem que eu soubesse por onde esteve. Um livro que havia sido entregue a mim por um rapaz em uma noite qualquer e que nos uniu, não por um, mas por cinco anos. Um livro que nunca tive coragem de voltar a ler. Um livro isca.

Abandonei minha amiga e a Bienal sem completa certeza de que o trabalho havia sido concluído, naquele enorme lugar as pessoas pareciam ondas enormes que não me deixavam chegar a saída, era 16h40min e eu havia aprendido a lição, tomaria um táxi que iria pelo corredor e evitaria o trânsito do fim da tarde de sábado em SP. Dei o endereço: Rua dos Pinheiros, 513. “Por favor”, eu disse, “tenho pressa”. Em seguida, fiquei mudo observando o taxímetro marcar 40 reais em segundos. Ainda havia 27 minutos de bandeira 2 pela frente.

Ao final da viagem, tive um pequeno susto, mas a proximidade de realizar minha pequena missão roubou minha atenção. Eu ainda não sabia o que eu queria, mas tinha atravessado a cidade, não de bicicleta, mas na corrida de táxi mais cara que já paguei na vida para encontrar Matilde Campilho, um nome que ressoou no meu relacionamento durante os cinco anos em que durou. A autora daquele livro que foi entregue a mim como um pedido de amor, um amor, que assim como o livro, eu nunca tive a certeza que era de fato meu.

Quando chegou a minha vez na fila de autógrafos eu não segurava o lançamento, o livro azul intitulado Flecha, eu segurava o Jockey e, quando olhei pra ela, eu soube exatamente o que fazer. Eu não queria aquele livro, eu nunca quis e ele estava ali em minhas mãos ainda sem dedicatória depois de tantos anos.

“Para quem dedico?”, perguntou ela em sotaque português.

“Para ele”, disse em sotaque cearense ao fim da minha caminhada de adeus.

Diego Gregório é jornalista, assessor de imprensa e autor do livro "Coisas que você mesmo poderia ter dito"

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