30 anos de Terra Sonâmbula: cultura e tragédia de Moçambique em Mia Couto
"Terra Sonâmbula", primeiro romance escrito por Mia Couto, completa três décadas de publicação como uma das grandes obras literárias da contemporaneidadeEnquanto a mídia da Europa e da América focava no período de tensão entre a União Soviética e os Estados Unidos durante a Guerra Fria, Moçambique iniciava sua independência repleta de conflitos. Portugal deixou o país africano em 1975, após uma série de embates e tragédias. Mas, pouco tempo depois, dois partidos políticos de Moçambique iniciaram confrontos para dominar o lugar.
A situação trouxe várias consequências, como a morte de aproximadamente um milhão de moçambicanos, a recessão econômica e social, além de um cenário de fome e pobreza. A guerra civil, que durou uma década e meia, permaneceu presente no imaginário em seus cidadãos e foi eternizada na literatura por meio do livro “Terra Sonâmbula”, do escritor Mia Couto.
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A obra, que completa 30 anos de publicação em 2022, foi o primeiro romance do autor e se consagrou como uma das 12 melhores produções literárias africanas do século XX, de acordo com o júri da Feira do Livro de Zimbabwe. A partir do contexto trágico da guerra de Moçambique, Mia Couto entrelaça a realidade com o sonho. Apresenta, através da história de dois protagonistas, as tradições da população moçambicana e sua relação com o tempo.
Histórias paralelas
Duas narrativas e trajetórias simultâneas acontecem na obra. A primeira é a do velho Tuahir e do jovem Muidinga que estão fugindo dos conflitos. No caminho, eles veem um “machimbombo” (no português do Brasil, a tradução é “ônibus”) e decidem se refugiar no local. Entretanto, o automóvel está queimado e cheio de cadáveres. Junto de um corpo, encontram diários em sua mala e começam a ler.
Assim inicia a outra parte da história: os cadernos narram o percurso e os pensamentos de Kindzu, um homem que sai em busca dos “naparamas”, guerreiros tradicionais que podem ser a única esperança contra os “senhores da guerra”. Apesar de viver em um país destruído pela guerra, o narrador tenta achar uma forma de reconstruir a realidade que conhece.
Entre as páginas, Mia Couto dialoga com a importância do sonho para a população moçambicana. Para os cidadãos, o ato de sonhar está correlacionado com a realidade. Já no prefácio, indica: “Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho”.
O autor revela a maneira como a guerra obrigou as pessoas a perderem suas identidades e seus passados em prol da tentativa de sobreviver. “Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar das esperanças. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós”.
Em entrevista ao Vida&Arte, publicada em junho deste ano, Mia Couto ressaltou que a presença de Moçambique nas suas histórias acontece de uma forma natural. “Não é uma preocupação no sentido de eu ter isso como uma missão ou tentar forçar qualquer coisa na história para que Moçambique apareça”, explicou.
“Acho que o que aparece de Moçambique nas minhas histórias, ou o que eu gostaria que fosse, é aquilo que é universal e está presente em outras culturas, mas que está presente em graus diferentes. Eu gostaria muito que, ao lerem meus livros, Moçambique se tornasse mais visível. Moçambique é um país, digamos, muito pouco visível. Se acontecer, por esta via literária, sem que seja minha intenção, eu fico muito feliz”, afirmou.
O sonho na literatura de Mia Couto
Com quatro décadas de carreira, Mia Couto já publicou quase 20 romances - sendo o último o “Mapeador de Ausências”, em que percorre as próprias memórias sobre a cidade em que nasceu e sobre sua relação com o pai. Mas há uma conexão entre suas obras: ele sempre mescla o mundo real com os sonhos.
“Eu acho que cria-se uma espécie de divisão, uma fronteira falsa entre a loucura e a razão. E a loucura foi atirada para o território da doença. Mas nós vivemos todos os dias momentos de loucura. Somos enlouquecidos. Estamos abertos à loucura quando estamos abertos a sonhar. O sonho é a desordem”, disse durante conversa com o Vida&Arte.
Para ele, a literatura permite que os limites entre a razão e a imaginação sejam diluídos. “Acho que o que a literatura e a poesia fazem é criar essa autorização, essa licença, para pôr esses dois mundos, o da razão e o da loucura, em consonância, em diálogo, em conversa. Acho que esse mundo de hoje perdeu um pouco essa ponte, essa capacidade de diálogo com aquilo que nos parece não-racional”, ponderou.
De acordo com o moçambicano, essa situação ocorre porque as pessoas perderam essa conexão por viverem em uma sociedade fluída. “As pessoas precisam de certezas, as pessoas estão com medo. Todas as pessoas, em todos os cantos do mundo, estão se perguntando o que está acontecendo. E elas não têm capacidade de resposta. Não conseguem construir o futuro, portanto, não conseguem construir essa história e sentir porque estamos aqui, o que vai acontecer com os nossos filhos, com os nossos netos”, refletiu.
Conexões com Guimarães Rosa
Mia Couto cresceu com um pai poeta e, durante sua infância, seu primeiro contato com os livros aconteceu por meio de poemas de escritores brasileiros. Mas uma de suas grandes inspirações foi Guimarães Rosa (1908 - 1967), que escreveu “Grande Sertões: Veredas” e com quem é comparado devido às semelhanças na prosa poética.
Quando estava no processo de escrita de “Mapeador de Ausências”, fez uma palestra na Universidade Católica de Pernambuco em 2019, em que abordou a maneira que o autor do Brasil lhe reconectou com sua cidade natal, Beira, quarta maior cidade de Moçambique. “No final da visita a Beira, eu pensava: 'vou ao Brasil e falarei, sim, sobre Guimarães Rosa com prova de gratidão para com toda a literatura que nos chegou da nação brasileira'. Rosa já antes me tinha brindado com vozes que nasciam para além do tempo. Ficavam”, disse durante o evento, que teve a cobertura do Estado de Minas.
“Agora ele me devolvia o chão que pensara ter perdido. Eis o que Rosa me voltava a ensinar: aquela minha cidade não era apenas um lugar. Era uma entidade viva que me tinha trazido ao colo e me tinha contado histórias”, explicou.
Livros de Mia Couto
Entre romances, livros de poesia e contos publicados, veja abaixo algumas das principais obras de Mia Couto para se aprofundar na literatura produzida pelo moçambicano:
Literatura africana em língua portuguesa
O Vida&Arte listou alguns livros da literatura africana que foram escritas em língua portuguesa e que foram publicadas por editoras brasileiras.
- “O Vendedor de passados”, de José Eduardo Agualusa
Depois de uma guerra civil que culminou na independência de Angola, a burguesia do país parece ter um futuro promissor. O problema é que ninguém teve um passado sem grandes traumas. Félix é uma dessas pessoas que soube aproveitar as oportunidades e atende a clientes variados em seu trabalho. Mas um homem cruza seu caminho na tentativa de se reconectar com a própria identidade.
- “Uma história de poligamia”, de Paulina Chiziane
No romance, Rami é uma esposa fiel ao marido, Tony. Apesar de sua personalidade subserviente e dos 20 anos de casamento, ele não a ama. Em um determinado dia, a mulher descobre que o homem tem várias amantes e, por consequência, filhos em Moçambique. Essa situação - conhecida por muitos na cidade - muda a trajetória de vida de todas as pessoas envolvidas.
- “O quase fim do mundo”, de Pepetela
Em um futuro distante, Calpe é uma cidade fictícia em algum lugar da África, entre as regiões Central e Astral. Neste local, a história acompanha o médico Simba Ukolo, um médico que vê a terra ser aniquilada após voltar de um dia qualquer de trabalho. O personagem, então, precisará encontrar um grupo de sobreviventes para continuar a viver e fazer renascer a humanidade.
- “Nós, os do Makulusu”, de José Luandino Vieira
Mais-Velho cresceu em Maulusu, um bairro pobre de Luanda, ao lado de Maninho, Paizinho e Kibiaka. Juntos, os quatro personagens seguem suas vidas em meio a um momento de libertação de seu país. Eles, que vivem as consequências do colonialismo no país, são obrigados a escolherem caminhos árduos e que lhes obrigam a deixar a infância para trás. Obra foi escrita quando José Luandino Vieira estava preso no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.
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