Coluna Vanessa Passos: Por que você só escreve sobre mulheres?

Em sua coluna, Vanessa Passos, escritora e professora de escrita criativa, questiona a hegemonia masculina na literatura e reflete sobre a importância de escrever sobre mulheres

14:00 | Jun. 25, 2022

Por: Vanessa Passos
Vanessa Passos fala sobre o espaço das histórias das mulheres nos livros (foto: Fernanda Barros/ O POVO)

No último plantão de dúvidas que dou toda semana para alunas e alunos do Curso 321escreva, meu curso online de escrita para formação de escritores, uma das alunas foi questionada com a pergunta que intitula a coluna de hoje. Na verdade, a pergunta foi além: por que ela escrevia apenas sobre mulheres e mulheres pobres, em situação de vulnerabilidade?

O mais curioso é que um tempo atrás eu recebi a mesmíssima pergunta, feita por pessoas diferentes, e desconfio que nós duas não sejamos as únicas questionadas sobre isso. Já ouvi também que atualmente estamos vivenciando um boom de personagens femininas, que a literatura contemporânea está cheia de histórias com mães e filhas, repleta de narrativas que falam sobre maternidade, ou ainda, que trazem a violência como pauta, por exemplo, a violência sexual, o estupro. Falam como se isso fosse algo clichê, repetitivo, mais do mesmo.

Posso garantir que temos livros incríveis que tratam sobre o tema, como: "Ao pó", de Morgana Kretzmann, e "Vista Chinesa", de Tatiana Salem Levy. Livros que foram importantes para que eu escrevesse "A filha primitiva", meu romance vencedor do 6º Prêmio Kindle de Literatura.

O interessante é que há muito tempo temos personagens masculinos pintando e bordando nos livros de literatura, o famoso perfil inquestionável: homem, branco, hétero, classe média ou rico. Temos diversas histórias de pais e filhos, do branco como opressor da classe social menos favorecida, do escritor com bloqueio criativo, do homem mais velho que se apaixona pela jovem, e isso de modo algum é relativizado. Mas quando mulheres escrevem e trazem personagens femininas, ainda que bem construídas, o fato é tratado como menor, como modinha.

“Saia da zona de conforto, você só escreve sobre isso, só sobre mulheres?”, nos questionam.

Em primeiro lugar, o incômodo me parece ter a ver com a hegemonia masculina, tanto por parte de quem escreve, quanto por parte dos personagens construídos. No entanto, vemos, aos poucos, a pesquisa realizada pela Regina Delcastagnè, na UNB, mudar os números e as estatísticas. Pesquisa que mostrava que 70,6% das grandes editoras publicam mais homens que mulheres, e que desses livros, 50,8% apresentava personagens masculinos. A quem essa pluralidade e diversidade incomoda, afinal?

Em segundo lugar, penso que é preciso escrever a história que se deseja contar. Nisso consistem a beleza e a liberdade da literatura, da criação, do ato de escrever. Nas primeiras aulas com meus alunos de escrita, eu falo sobre o livro "Cartas a um jovem poeta", de Rainer Maria Rilke. No livro, um jovem escritor pergunta ao mestre se seus textos são bons. Todavia, o mestre rebate a pergunta dizendo que não é sobre isso que ele deve inicialmente se questionar, que a pergunta correta deveria ser: você morreria se deixasse de escrever?

Pode soar dramático, mas a lição que aprendi com Rilke é que começar uma trajetória de escrita olhando para fora e não para dentro é um erro. É preciso reforçar o quão importante escrever é para nós, é preciso saber que temas, que personagens você quer criar e entender que só você pode dizer isso, mais ninguém. Só assim você conseguirá construir algo genuíno, que de fato toque o leitor.

E aqui não estou desconsiderando a importância das técnicas de escrita, da formação do autor, do processo de revisão e de lapidação do texto. O que estou dizendo é que faz parte da construção de uma trajetória literária este autoconhecimento, que não há uma fórmula e nem podemos aceitar que nos ditem que histórias vamos escrever. É preciso peitar essa afronta, esses questionamentos, não recuar, forçar passagem e defender aquilo que é importante para nós.

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