Coluna Vanessa Passos: O poder de uma primeira versão
Eu aprendo com os meus erros de escrita todos os dias, porque o feito é sempre melhor do que o perfeito não feitoÉ comum lutarmos com a página em branco, seja do papel, seja do computador. Imaginamos que não somos escritores porque, ao nos depararmos com o que escrevemos, com espanto, percebemos que não estamos diante de uma obra-prima. E muitas vezes, com a mesma força, um seguido do outro, surge o desejo forte de escrever nossas próprias histórias e a frustração diante dos erros grotescos que cometemos na escrita.
Então fica a dúvida: como alguém que comete tantos erros pode desejar escrever, ou ainda, ser escritor publicado, ser lido?
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Terminar um livro pode ser um alívio e um martírio ao mesmo tempo. Um alívio de chegar a um ponto final e um martírio de ver tantos erros ali. E se eles estavam ali, aquilo significa que eu não era escritora, ou pelo menos, não boa o suficiente. Foi o que eu pensei um dia. Então, desisti de ser escritora.
Pelo menos tentei. Mas não consegui. A vontade de escrever permanecia, mesmo com a falta de tempo, de encorajamento das pessoas próximas e do próprio mercado editorial, que continuava a publicar mais homens que mulheres e a divulgar muito mais seus trabalhos, como aponta a pesquisa realizada pela professora Regina Descastagnè, da UNB.
Resolvi mudar de tática. Deixei de lado a ideia da genialidade que tinha a respeito dos escritores. Sempre disse para uma amiga de infância, Lívia Cavalcante, que nunca fui muito inteligente, mas que era esforçada. Ela tinha muita raiva, não acreditava em mim, dizia que era mentira. Não era. Se a genialidade existe, eu não fui agraciada com ela. Comecei a estudar sobre escrita, sobre o processo de formação de escritores, no mestrado e no doutorado.
E nas minhas descobertas, conheci o processo de escritores como Milton Hatoum, que reescreveu onze vezes seu romance "Dois irmãos" (curiosamente, o número exato de vezes que reescrevi "A filha primitiva"). Ele, que teve a coragem e a ousadia de cortar 50 páginas do seu romance, não escreveu uma obra-prima de uma sentada. Foi preciso trabalhar e retrabalhar seu livro.
Como eu me senti aliviada e acolhida em saber desse processo de criação literária. Eu estava olhando apenas para o palco, para o resultado final, e não para os bastidores. Portanto, agora, eu faço parte do time de escritoras e escritores que reescrevem várias vezes, que entregam seus textos para os amigos escritores lerem e darem feedback, que se permitem errar.
Foi assim que eu aprendi o poder de uma primeira versão. A primeira versão de um texto geralmente está cheia de lacunas, erros e ainda é apenas um esboço do que o livro vai se tornar. Mas, como costumo dizer para os meus alunos de escrita, só o que já nasce pronto é monstro. Um livro é um processo, não vale a pena ter pressa e pular esses degraus.
Eu aprendo com os meus erros de escrita todos os dias, porque o feito é sempre melhor do que o perfeito não feito. Eu não tenho como corrigir um texto perfeito na minha cabeça, precisa estar no papel.
Então, minha primeira versão funciona como a captura da ideia do livro que eu quero escrever, mas sei que ainda não o escrevi como gostaria. Eu preciso limpá-lo. Como um bebê, um recém-nascido. Cheio de sangue e placenta, quase não conseguimos vê-lo e enxergá-lo direito ao nascer.
É assim, com a reescrita, digo, com as reescritas, no plural, que o livro toma forma, corpo. Mas tudo começa com a primeira versão, sem dúvidas. É preciso dar o primeiro passo. A escrita, assim como a vida, é cheia de ciclos, e o primeiro deles é finalizar a primeira versão de um livro.
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Vanessa Passos é escritora, professora de escrita criativa e vencedora do Prêmio Kindle com o livro "A filha primitiva"
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