Artistas relatam constrangimentos em bancas de identificação racial da Secult
Bancas de heteroidentificação racial realizadas pela Uece no processo de editais da Secult têm série de decisões e práticas questionadas por proponentesOs editais de Incentivo às Artes, Cultura Infância e Cidadania e Diversidade Cultural, todos da Secretaria da Cultura do Ceará, tiveram nas edições mais recentes reserva de vagas destinadas a pessoas negras e indígenas, conforme políticas afirmativas previstas no Plano Estadual de Cultura. Como parte do processo, foram realizadas em parceria com a Universidade Estadual do Ceará e com base na Lei Estadual Nº. 17.432/2021 — que estabelece cotas raciais para pessoas negras —, uma série de bancas virtuais de heteroidentificação racial, um procedimento que consiste na avaliação, feita por uma comissão convocada pela Uece, da autodeclaração étnico-racial de proponentes pretos e pardos. Apesar de necessária para garantir o cumprimento pleno da ação afirmativa, a experiência foi, conforme relatos feitos ao Vida&Arte, de constrangimentos e racismo estrutural. A reportagem procurou a Secult e a Uece com demandas e as respostas das instituições estão, na íntegra, ao final do texto.
O fotógrafo Rubens Venâncio e o escritor Wilson Júnior se inscreveram no edital de Incentivo às Artes, enquanto o arquiteto e arte-educador Antônio Jarbas participou da chamada de Cidadania e Diversidade Cultural. Todos se autodeclararam pardos, mas foram considerados não-cotistas pelas bancas. Ao entrarem com recursos, participaram de novas bancas, mas somente Jarbas teve a situação alterada.
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A realização virtual é criticada. “A utilização de equipamentos como computador para esse tipo de avaliação é falha e imprecisa. Isso prejudica pessoas negras de pele clara porque nem a banca, nem o candidato estão numa situação adequada de luz, de monitores”, avalia Rubens.
Além disso, a presença de pessoas brancas na comissão de avaliação também causou constrangimentos. "Na banca que me considerou não-cotista, tinha algumas pessoas que eram brancas. Foi uma situação que me constrangeu bastante, porque ficou como se eu tivesse tentando fraudar o processo e, ainda, de certa forma, com elas me dizendo que eu não sou uma pessoa negra”, divide Jarbas.
“Quando saiu o resultado preliminar, me senti profundamente humilhado porque em nenhum momento da minha vida fui lido como uma pessoa branca. Minha experiência foi a de uma pessoa negra”, afirma Wilson. “Esse é um processo em que seria necessária entrevista pessoal, análise de imagens. Quando você vai fazer um processo que teoricamente visa diversidade e inclusão, tem que tomar todos os cuidados porque existem dores, mágoas, processos históricos”, segue o escritor.
Na avaliação da artista e produtora cultural Gabi Gomes — que não participou de bancas, mas vem acompanhando os debates — , a utilização da palavra “pardo” na inscrição dos editais “gera diversas interpretações". “Vimos pessoas brancas se autodeclarando como pardas, vimos pessoas negras de pele mais clara tendo acesso negado”, elenca a artista.
“Não podemos garantir unanimidade na heteroidentificação devido justamente à complexidade na formação racial do nosso País. Portanto, para que injustiças sejam evitadas, o proponente identificado como não cotista pela banca poderia ter seu projeto avaliado na ampla concorrência. Casos mais graves, como uma pessoa nitidamente branca usando de má fé ao se inscrever nas cotas, precisariam de medidas mais severas”, sugere Gabi.
Na prática, porém, proponentes como Wilson e Rubens, uma vez considerados não cotistas, acabaram excluídos de fato dos processos dos editais. Apesar de prevista pela Lei Estadual das Cotas para evitar casos de fraudes, a exclusão, na avaliação dos proponentes, se torna uma “penalização” para pessoas negras.
“É preciso tomar muito cuidado na hora de excluir uma pessoa parda. Ou você define melhor os critérios dessa seleção, ou você tem que calcular melhor a forma de se avaliar. Você transforma uma experiência que deveria ser para permitir diversidade numa experiência racista”, pondera Wilson. “A banca tem a função de evitar enganos ou fraudes, isso é uma realidade, mas deixar que elas sejam um instrumento de penalização é totalmente contraditório”, dialoga Rubens.
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O fotógrafo ressalta, ainda, que os nomes de todos os proponentes foram divulgados no resultado preliminar das bancas, reforçando os constrangimentos. “Alguém passa por todo um processo de se entender como homem e mulher negra, aí o Estado, via Secult, diz que você não é e ainda publica o seu nome. Além de ir de encontro à construção de consciência racial, isso expõe o indivíduo”, considera.
Os dois artistas, bem como outros proponentes atingidos, pretendem agir contra a exclusão do processo seletivo e o indeferimento das autodeclarações. "O Estado tem que ser responsável pelos seus atos, inclusive os que aumentam o que a gente entende por racismo estrutural", afirma Rubens.
Respostas da Secult
O Vida&Arte contactou a Secretaria da Cultura com perguntas acerca das políticas afirmativas aplicadas pela pasta e o processo questionado das bancas de heteroidentificação. A íntegra das respostas segue abaixo, com as perguntas feitas pela reportagem destacadas em negrito:
"A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará tem, ao longo de sua história, tomado posições em torno dos princípios da diversidade. Este princípio também é um valor primordial na identidade organizacional da Secretaria e se traduz como o primeiro objetivo da lei 16.026/2016 que institui o Plano Estadual de Cultura. Neste objetivo, compreendemos a diversidade em sua plenitude étnica, artística e cultural. No entanto, foi a partir de 2016, que as políticas de cidadania e diversidade cultural, bem como as políticas afirmativas, não só ganharam relevos, como também se inseriram no planejamento, conquistando espaço orçamentário no Plano Plurianual -PPA e na Lei Orçamentária Anual - LOA. Instituímos, por portaria, o Comitê de Culturas Indígenas e o Comitê de Expressões Culturais Afro-brasileiras como instâncias de participação social e construção coletiva das políticas, realizando, inclusive, duas edições de prêmios para estes segmentos, ao tempo em que estamos finalizando os planos setoriais que serão encaminhados pela governadora Izolda Cela como projetos de lei, instituindo assim, uma política de estado para as expressões culturais indígenas e afro-brasileiras no Ceará. Portanto, chegarmos a determinação de cotas para os editais, é mais um passo para as políticas afirmativas.
As cotas raciais são frutos de luta histórica do movimento negro e de agentes culturais negros. Portanto, elas não surgiram agora na Secult. Pelo contrário, elas fazem parte de um diálogo construtivo, de pensamento de gestão e de uma política cultural afirmativa que tende a conquistar mais espaço na estrutura, no planejamento, no orçamento e na governança da Secretaria. É disso que estamos tratando. Se estamos com os editais de Incentivo às Artes, de Cidadania e Diversidade e de Cultura Infância com a determinação de cotas, isso é só o começo. A meta é universalizar para todos os editais e programação da Rede Pública dos Equipamentos Culturais da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Esses três editais serão base de informações, indicadores, métodos e de avaliação para que possamos melhorar os próximos passos, qualificar as políticas culturais e aprofundar as políticas afirmativas no âmbito da Secult. E todo esse processo ocorre no diálogo, no debate, no embate e na construção social e coletiva com a sociedade civil. Precisamos avançar, juntos!
As políticas afirmativas são conquistas importantes, vitórias e demandas dos agentes culturais e dos movimentos sociais negros do Ceará, medidas necessárias para os avanços na democratização, na diversidade cultural e na inclusão. A realização das Bancas de Heteroidentificação Racial é um processo que tem ocorrido junto à Universidade Estadual do Ceará (UECE), atendendo às diretrizes do Plano Estadual de Cultura e dando continuidade ao avanço na implementação de políticas mais sólidas direcionadas a uma agenda afirmativa.
Essas ações afirmativas são também fruto de importantes parcerias e processos de diálogo entre a comissão organizadora dos editais junto às instâncias do próprio Governo do Ceará e da sociedade como um todo, como o Gabinete da Casa Civil, a UECE, a Coordenadoria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Coppir), Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (Ceppir), o Instituto Federal do Ceará (IFCE), o Comitê Gestor das Políticas Culturais Indígenas no Ceará, Comitê Gestor das Expressões Culturais Afro-brasileiras do Ceará, além de outros espaços importantes. Essas trocas trouxeram as reflexões conceituais e práticas necessárias para qualificar o debate e operacionalizar as ações afirmativas na convocatória das cotas étnico-raciais, bem como os critérios de pontuação que envolvem esse tema.
A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, levando em consideração os editais que compõem o Plano de Ação Ceará das Artes e da Cidadania Cultural, lançados no ano de 2022, estabelece 20% (vinte por cento) das vagas destinadas às cotas étnico-raciais para pessoas negras e indígenas.
Uma etapa importante prevista dentro da Lei de Cotas Raciais (Lei Estadual nº 17.432/2021 e Lei Federal nº 12990/2014) é a Banca de Heteroidentificação Racial, responsável por avaliar o fenótipo da(o) candidata(o) à vaga pleiteada. No Brasil, o racismo é fortemente pautado nas características fenotípicas e, por isso, as bancas são importantes para que as ações afirmativas cumpram seu objetivo. As bancas estão sendo realizadas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), cabendo a esta instituição a gestão e a responsabilidade pelo processo seletivo. Ressaltamos que as bancas de Heteroidentificação Racial são compostas de forma heterogênea em gênero e raça, por pessoas capacitadas no âmbito das relações étnico-raciais convocadas pela UECE.
O POVO - Quantas e quais foram as experiências de bancas de heteroidentificação racial que a Secult já realizou?
A política de cotas é uma política da Secult Ceará, pela primeira vez implementada dentro dos editais de forma direta. Tivemos a experiência agora dos editais: Edital cidadania e diversidade cultural, Ceará de Incentivo às artes e Cultura e infância, com a banca operacionalizada pela UECE. Anteriormente, tivemos o Edital Arte em Rede, que contou com apoio do IFCE para a realização das bancas. E também tivemos outras ações afirmativas em seleções públicas para os equipamentos da Rede Pública de Equipamentos Culturais do Ceará, que têm gerência do Instituto Dragão do Mar e Instituto Mirante de Cultura e Arte.
O POVO - Por que a Secretaria da Cultura divulgou, em certos resultados, não somente os números de inscrição, mas também os nomes completos de proponentes?
Ressaltamos que, em todas as etapas da avaliação e seleção dos editais, os nomes dos proponentes são divulgados de modo a garantir transparência e publicidade. No entanto, atendendo a solicitações dos próprios proponentes, e em diálogo também com a UECE, a Secult Ceará optou por identificar os números de inscrição nos resultados divulgados.
O POVO - A Secult chegou a receber reclamações formais (além de casos de recursos) de proponentes sobre o processo? Em relação a críticas e relatos de constrangimentos e racismo no processo, como a secretaria responde e pretende agir a partir deles, seja para questões em aberto das bancas já realizadas, seja para o aprimoramento do formato em futuras realizações?
A Secult Ceará mantém diálogo constante e permanente com todos os proponentes por e-mail, e todas as dúvidas são, cuidadosamente, respondidas, por parte da Secult, a cada questionamento ou pedido de esclarecimento por parte dos proponentes. Estamos em diálogo tanto com as instituições envolvidas - UECE e Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (Ceppir) - quanto com os agentes culturais para possíveis melhorias no processo. A Secult Ceará está coletando as críticas e sugestões, realizando reuniões internas e avaliando o processo das bancas de heteroidentificação racial, para qualificar a política afirmativa. Nesses termos, a Secult está organizando com a Ceppir e UECE um seminário para reflexão e debate em torno das políticas afirmativas e de cotas, convidando especialistas, bem como artistas e agentes culturais, incluindo aquelas pessoas que são críticas ou que se sentiram afetadas por esse processo. O fato é que a realização das cotas é uma determinação das políticas culturais por parte da gestão, fortalecendo as ações afirmativas e as políticas de diversidade e de cidadania cultural. Claro que este processo precisa ser aprimorado no sentido de qualificar e aprofundar o acesso aos bens e serviços, aos recursos e fomentos para pessoas negras e indígenas, visando reparar as distorções históricas que predominam nas políticas públicas. A cota é um mecanismo legal e, a Secult, não pode retroceder. Vamos aprimorar e qualificar essa conquista social e política do movimento negro no Ceará e no Brasil.
O POVO - Um ponto de crítica em relação ao processo das políticas afirmativas na Secult é a utilização do termo "pardo" como uma das categorias de pertencimento étnico-racial, por conta da abrangência de interpretações acerca do conceito. Existe alguma possibilidade dos termos serem revistos em editais futuros?
Em 25 de março de 2021, a Lei Estadual nº 17.432/2021 foi sancionada pelo ex-governador Camilo Santana, instituindo política pública social e afirmativa de grande densidade e garantindo 20% das vagas em concursos públicos estaduais para a população negra (preta ou parda, de acordo com o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Sendo válido ressaltar também a Lei n°17.455 de 27 de abril de 2021 e o Decreto Estadual N° 34.534/2022, de 03 de fevereiro de 2022 - que regulamentou a lei 14.432/2021 supracitada.
Dessa forma, não cabe à Secult Ceará a revisão do termo, que é previsto em lei. Para efeitos de políticas públicas pretos e pardos é igual a negro , conforme estabelece o Estatuto da Igualdade racial.
O POVO - Nos editais da Secult que instauraram políticas afirmativas, fala-se que "o enquadramento ou não do proponente na condição de cotista não configura ato discriminatório de qualquer natureza". O que isso significa na prática?
O próprio edital pontua que a Banca de Heteroidentificação Racial não configura ato discriminatório de qualquer natureza. O STF, em o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade - ADC 41/DF -, traz que “É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.
O POVO - Por que pessoas negras consideradas não cotistas pelas bancas não podem voltar à ampla concorrência?
Voltar para a ampla é deslegitimar o resultado, o trabalho e o procedimento técnico e metodológico das bancas. Existe uma tendência nacional de desprestigiar as bancas, desqualificar e não pactuamos, de modo algum. O Ceará é um dos poucos Estados do País que está fazendo diferente, que está respeitando as bancas, a luta dos movimentos.
De acordo com a Lei Estadual 17.432/2021 e suas alterações na Lei N°17.455/2021 e Decreto 34.534/2022, caso tenham obtido a classificação como "não cotista", ocorrerá a desclassificação no certame. Logo, entende-se que não há previsão legal para o retorno de candidatos à ampla concorrência. A banca de heteroidentificação é um procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração racial, uma etapa importante prevista dentro da Lei de Cotas Raciais, logo, legítima para definir a condição de cotista.
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Respostas da Uece
O Vida&Arte contactou a Universidade Estadual do Ceará com perguntas acerca da realização das bancas de heteroidentificação racial realizadas pela instituição no processo dos editais da Secult. A íntegra das respostas segue abaixo, com as perguntas feitas pela reportagem destacadas em negrito.
O POVO - Como foi construído o formato das bancas de heteroidentificação dos processos dos editais em curso e, também, a composição das próprias bancas?
O formato das bancas das Comissões de Heteroidentificação da Universidade Estadual do Ceará (Uece) está previsto na Resolução nº 1657 – CONSU, de 1º de abril de 2021. Em seu Art. 3º § 3º, temos que “A composição da CHET/UECE dar-se-á por meio de portaria específica emitida pela Presidência da FUNECE, considerando a indicação do NUAPCR/UECE, assegurando-se a diversidade de pertencimento étnico-racial e de gênero.” Ainda, no Art. 3º § 4º alínea II, é pré-requisitos para integrar as CHET “comprovar conhecimento acerca da temática de relações étnico-raciais ou ser reconhecido pela atuação em programas e em projetos que visem à igualdade étnico-racial e ao enfrentamento do racismo.”.
Todos os critérios previstos na Resolução foram integralmente atendidos.
O POVO - Por que as bancas foram realizadas de maneira virtual, e não presencial?
A demanda de realização das bancas em formato remoto ocorreu em função de haver candidatos de todo o Ceará, motivo pelo qual, para atender ao cronograma, não haveria tempo e outras condições objetivas para realização do processo de forma presencial em todos os municípios.
O POVO - Como foram estabelecidos e quais são os critérios aplicados pelos membros da banca no processo de heteroidentificação?
Os critérios aplicados pelas bancas de heteroidentificação estão previstos na Resolução nº 1657 – CONSU, de 1º de abril de 2021, da qual transcrevemos o artigo que trata do tema.
Art. 9º. A Comissão de Heteroidentificação da UECE, nos processos de verificação e de validação de que trata esta Resolução, considerará:
I. o teor da autodeclaração assinada e entregue pelo candidato por ocasião de sua inscrição;
II. a análise de documentos complementares solicitados pela CHET/UECE;
III. as características fenotípicas do candidato, observadas durante procedimentos conduzidos e registrados pela Comissão de Heteroidentificação.
Todos os critérios foram integralmente aplicados e atendidos pelas bancas.
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