Glamour e ativismo político no Festival de Cannes

Com a Europa em plena guerra, a principal mostra de cinema do continente faz jus à fama de combinar entretenimento e reflexão. Guerra na Ucrânia marca a programação, também pela exclusão total de profissionais russos
Autor DW Tipo Notícia

Promover glamour, mas mantendo o cunho político, foi sempre a ambição do mais importante festival de cinema da Europa, o de Cannes. Com uma guerra grassando no continente, contudo, essa associação ganha potencial de conflito. O diretor artístico Thierry Frémaux já anunciara com antecedência que não receberia nenhuma delegação oficial da Rússia no 75º jubileu do evento, embora reservando a possibilidade de incluir cineastas russos no programa.

Kirill Serebrennikov foi convidado para a mostra competitiva com "Zhena Chaikovskogo" ("A mulher de Tchaikovsky"), pois, como argumentou Frémaux, não recebeu nenhum patrocínio estatal. É a terceira vez que o russo participa do festival. Atualmente vive na Alemanha, depois de passar dois anos de prisão domiciliar em seu país. Seu filme narra um episódio da vida do célebre compositor Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1840-1893), que, por medo de ser exposto como homossexual, casou-se com uma jovem apaixonada por ele, arrastando-a consigo para uma tragédia.

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Poucas mulheres, muitos veteranos

Das 21 produções da seleção oficial, apenas quatro foram dirigidas por mulheres. Por outro lado, concorrem diversos veteranos da Palma de Ouro. Entre eles, é aguardado com suspense o velho mestre americano David Cronenberg, cujo "Crimes of the future" ("Crimes do futuro") é um misto de ficção científica e terror. Estrelado por Léa Seydoux, Viggo Mortensen e Kristen Stewart, sua trama se desenrola num futuro em que tecnologias avançadas permitem modificar a constituição biológica humana.

Também já laureados em Cannes são a dupla belga de irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, o sueco Ruben Östlund, o japonês Kore-Eda Hirokazu e o romeno Cristian Mungiu. O diretor sul-coreano Park Chan-wook, que também já recebeu duas vezes o Prêmio do Júri, volta a concorrer com o thriller de mistério "Decision to leave" ("Decisão de ir embora").

Quem já foi convidado cinco vezes para Cannes mas sempre saiu de mãos vazias, é o americano James Grey. Estrelado por Anne Hathaway e Anthony Hopkins, seu "Armageddon time" ("Tempo de Armagedom") se passa na época da eleição de Ronald Reagan como presidente, na qual a família Trump também andou mexendo os pauzinhos.

Horror e show-business

Na edição deste ano do festival não faltam sustos e sangue: o filme de abertura, exibido hors-concours, já é uma comédia de zombies, "Coupez!" ("Corta!"), de Michel Hazanavicius (diretor de "O artista"). Em vez desse jogo de palavras unindo o mundo do cinema e terror, seu título deveria ser "Z" ("comme Z"), porém a letra está atualmente associada à agressão militar da Rússia à Ucrânia. Macabro também é "Holy Spider" ("Aranha Sagrada"), com que o iraniano Ali Abbasi concorre à Palma de Ouro: um homem que se denomina "Assassino da Aranha" considera ser sua missão sagrada matar as prostitutas de rua da cidade sagrada de Mashhad.

Contribuindo para a aura hollywoodiana no litoral francês, estão programadas estreias como a de "Top Gun: Maverick", sequência do sucesso de ação de 1986 (no Brasil, "Ases indomáveis"), tendo novamente como protagonista Tom Cruise, que deverá ir à Côte d'Azur. Também ansiosamente aguardado e fora da competição é o filme biográfico "Elvis", dirigido pelo australiano Baz Luhrman. O jovem "Rei do Rock'n'Roll" é interpretado por Austin Butler, com Tom Hanks no papel de seu igualmente lendário empresário, o holandês Tom Parker.

Colonialismo e suas sequelas

Não há como não registrar: com zero concorrentes na mostra competitiva, não se pode dizer que a África esteja representada em Cannes. Pelo menos alguns cineastas abordaram as temáticas do colonialismo, migração e racismo. O drama "Tori and Lokita", dos Irmãos Dardenne, trata de dois jovens migrantes do continente africano, interpretados por Joely Mbundu e Pablo Schils.

"Mother and son", da francesa Lèonor Serraille, acompanha a imigrante Rose e seus dois filhos, Ernest e Jean, desde a chegada em Paris, vindos da Costa do Marfim, em 1986, até 2010, mostrando como a família evolui junta, mas também ameaça se esfacelar. Dirigida pelo vídeo-artista catalão Albert Serra, "Pacifiction" aborda os conflitos entre as instituições coloniais da França e a população da Polinésia Francesa. O drama "RMN", de Christian Mungiu, igualmente encara a problemática da discriminação: num lugarejo da Transilvânia, na Romênia, preconceitos racistas vêm à tona com a chegada de operários estrangeiros, desencadeando uma perturbadora mistura de medos, frustrações, conflitos e paixões.

Russos excluídos de Cannes

Segundo fontes do festival, a exigência por parte do Ministério da Cultura da Ucrânia fora que "não se escute nenhum discurso russo na Croisette". A organização seguiu basicamente essa diretriz, barrando não só representantes oficiais, mas também cineastas, críticos e jornalistas da Rússia. A participação de Serebrennikov, que vive na Alemanha, é um desvio mínimo dessa posição.

Uma das vítimas da decisão de Cannes foi o conceituado crítico cinematográfico russo Andrei Plakhov, que no entanto reagiu com altivez: "Talvez precisemos realmente compreender o que significa ser cidadão de um país agressor", declarou em carta aberta. Porém nem todos na Ucrânia endossam a política de tolerância zero contra tudo o que é russo. "O que está acontecendo é terrível", manifestou-se ainda em março Sergei Loznitsa, possivelmente o diretor mais famoso da Ucrânia, sobre o boicote generalizado aos filmes russos. "Mas apelo a todos para não entrarem numa loucura. Não devemos julgar os seres humanos por seus passaportes, mas por suas ações", pediu.

Essa declaração à revista especializada Variety custou a Loznitsa a expulsão da Academia de Cinema Ucraniana, fundada em 2017. Seu "The natural history of destruction" ("A história natural de destruição") será visto em Cannes em mostra paralela.

Guerra na Ucrânia em foco

Também sob o signo da invasão da Ucrânia pela Rússia está a exibição de "Mariupolis 2", de Mantas Kvedaravičius, a sequência de seu documentário que rodada em 2014 na Ucrânia. O cineasta lituano foi assassinado pelo exército russo em abril na cidade de Mariupol. Sua noiva, Hanna Bilobrova, que o acompanhava na ocasião, conseguiu salvar o material já filmado. Graças também ao trabalho da editora de Kvedaravičius, Dounia Sichov, o resultado é um testemunho altamente atual e chocante.

Segundo os responsáveis pelo festival, era absolutamente indispensável mostrar o filme em Cannes, e ele foi incluído a posteriori na programação, com estreia em 19 de maio. Na mostra paralela Un Certain Regard, outra produção deve causar polêmicas: concluído ainda antes da guerra, "Bachennya metelyka" ("Visão de borboleta"), do ucraniano Maksim Nakonechnyi, conta a "dura história surrealista de uma combatente, a piloto Lilia, que após a experiência do cativeiro busca desesperadamente retornar a sua vida normal". Segundo o jovem diretor, "infelizmente parece que o meu filme era uma premonição da guerra". Desde o começo da invasão russa, Nakonechnyi atua no front, com armas e câmera: "Daí vai resultar um documentário", promete. A 75ª edição do Festival de Cinema de Cannes vai de 17 a 28 de maio de 2022. (Anastassia Boutsko e Julia Hitz/ DW)

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