Sertãopunk: um movimento que reflete sobre o Nordeste plural do futuro
O "sertãopunk" imagina como será o futuro do Nordeste a partir da perspectiva de artistas nordestinos. Surgindo como um subgênero literário, ele dá os primeiros passos como um movimento em outras linguagens artísticas
10:00 | Mai. 21, 2022
“A vista da Nova Fortaleza era uma das melhores ali, com seus prédios recobertos de painéis solares transparentes, as avenidas flutuantes, o céu limpo, sem nuvens, e o mar se estendendo além da plataforma”. Assim a escritora cearense G. G. Diniz descreve a capital do Estado em um futuro fictício no conto “Os Olhos do Cajueiro”. No seu universo, a Cidade flutua em cima do mar, por isso, nunca falta água no Ceará. Mas nem tudo funciona: não há terra o suficiente, o racismo ainda se faz presente e o privilégio para famílias abastadas continua evidente. Essa é uma das histórias presentes no livro “Sertãopunk: histórias de um Nordeste do Amanhã”, que dá os primeiros passos para um novo movimento literário no Brasil.
A ideia iniciou de um grupo de escritores - G. G. Diniz, Alec Silva e Alan de Sá - que estava insatisfeito com a maneira que a região nordestina era retratada na ficção especulativa. Muitos autores brasileiros, por exemplo, costumam mostrar uma cultura homogênea e, às vezes, carregada de estereótipos do sertão. “Criou-se, no imaginário popular, essa imagem de Nordeste, que é uma imagem homogênea, única e que apaga completamente a diversidade da nossa região, que tem nove estados. A gente não é uma coisa só”, afirma G. G. Diniz.
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“O sertãopunk surgiu de uma insatisfação com o jeito que o futuro do Nordeste estava sendo retratado pelo cenário de ficção especulativa nacional. A gente não estava gostando. Então pensamos: ‘e se a gente do Nordeste pensasse sobre o futuro do Nordeste, como ele seria?’. Nisso, criamos o sertãopunk”, indica a autora. De acordo com ela, nasceu um movimento de ficção futurista nordestina, “porque o coração do sertãopunk é retratar um futuro onde o Nordeste é o centro do movimento cultural tecnológico e político”.
Precursora do movimento, Diniz escreveu o conto “O sertão não virou mar" (2019) antes mesmo do livro-manifesto, publicado há dois anos e que agrega quase mil avaliações na Amazon. Entretanto, foi apenas com a obra “Sertãopunk: histórias de um Nordeste do Amanhã” que os três autores tentaram conceitualizar o subgênero. Entre as 50 páginas, os escritores explicam que os gêneros podem ser dos mais variados: fantasia, ficção científica, terror - qualquer um que se encaixe na categoria de ficção especulativa. A base, porém, é imaginar o futuro do Nordeste a partir das perspectivas dos nordestinos.
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“Eu acho que o autor do Nordeste acaba tendo um prejuízo um pouco maior em relação ao mercado literário, porque ele está fora do grande centro em relação à escrita. No eixo Rio de Janeiro e São Paulo e também na região Sul, existe uma organização muito maior com editoras, autores, premiações”, identifica Alan de Sá, responsável pelo conto “Schizophrenia”.
“A gente não está buscando um estilo de escrita, a gente está buscando uma forma de empoderar autores nordestinos para contarem suas visões do Nordeste também. Pode ser dentro do sertãopunk, que não é a única, nem a melhor de todas, mas pode ser em outra vertente. O sertãopunk quer ser essa possibilidade para autores negros, LGBTQIA+, indígenas do Nordeste contarem suas histórias”, avalia.
As bases do sertãopunk
O sertãopunk é inspirado em três movimentos distintos: o solarpunk, o realismo mágico e o afrofuturismo. Entenda os conceitos:
Questionar consensos
Chico Milla, autor de uma história em “Farras Fantásticas” e que está editando a coleção “Budega Sertãopunk” para o grupo Caju de Ouro, reflete sobre a importância dos nordestinos mostrarem suas vivências no Nordeste por meio da arte.
O POVO - Em sua opinião, qual a importância de firmar um subgênero literário que trate de um Nordeste múltiplo escrito por pessoas que vivenciam as realidades da região?
Chico Milla: Mais do que importante, é necessário. Sobre as motivações, são várias: pensa no estereótipo do caipira sertanejo que fala errado e nunca viu uma escada-rolante, ou nas novelas com personagens no molde "nordestino coitadinho que precisa de ajuda", escritas por roteiristas que nunca pisaram na região. Que fique claro: tais realidades existem, mas estão muito longe de serem as únicas. Fica parecendo que a gente não mudou nada nos últimos 50 anos. O Nordeste tem algumas das universidades mais importantes do país e vários dos nossos artistas locais ainda precisam explicar constantemente em congressos, bienais e eventos em outras regiões do País que tomamos banho todos os dias. Não estou exagerando, acontece. Meu ponto é que não precisamos dessas imagens. Quer dizer: merecemos coisa melhor. Outro argumento do qual é sempre bom lembrar é que representação e representatividade são coisas diferentes, distantes uma da outra. Uma vez, deram um exemplo numa reunião do Coletivo Transfabuladores que não consigo tirar da cabeça: um homem branco escrever uma personagem que é uma mulher preta é uma coisa, outra bem diferente é uma mulher preta escrever sobre uma mulher preta com uma propriedade que nem a melhor das pesquisas de internet pode proporcionar. É tipo ser gay e precisar "se assumir" pra sua família. Alguém pode imaginar situações, sentimentos e conflitos internos, mas até que ponto? Tem coisa que só a experiência individual alcança. Sem falar que hoje em dia muitos leitores não querem se identificar apenas com os personagens, mas também com os autores. E estão no pleno direito deles, convenhamos. No caso do sertãopunk, obviamente, o contexto envolve dinâmicas regionais, mas que se encontram latentes em discurso de gênero, raça e classe também. É complexo, mas uma das vantagens do movimento são suas reflexões intuitivas, didáticas até.
O POVO: Por muito tempo e ainda hoje, as realidades nordestinas foram representadas por autores com pouca proximidade com a região, principalmente, na ficção especulativa. Por que estabelecer um movimento nordestino na ficção especulativa especificamente?
Chico Milla: A resposta vai soar pretensiosa, mas é a pura verdade: somos capazes demais pra que outros falem por nós. Raquel de Queiroz, no Roda Viva de 1991, disse que o Sertão miserável e retirante do seu romance "O Quinze" não existia mais. Se não existia em 1991, por qual razão existiria em 2022? O cerne do comentário ainda persiste. Até quando seremos vinculados apenas ao cangaço, ao coronelismo e à fome? Não que isso esteja abolido, eu não falei isso. Meu questionamento é outro: por que, quando faltou água no Sistema Cantareira em São Paulo, chamaram de "crise hídrica" e, quando falta em algum estado do Nordeste, o termo usado é "seca"? Taí Durval Muniz, Marcelino Freire e outros tantos mais que não me deixam mentir. Por que a "arte nordestina", quando feita por não-nordestinos, é bem-vinda em alguns espaços, mas o nordestino não? O sertãopunk é sobre isso: questionar consensos estereotipados sobre nossa região. Mas não só isso.
Projetos futuros
O futuro do “sertãopunk” está em aberto. Mas ações acontecem nos últimos dois anos que firmam o movimento no cenário independente brasileiro. “Entendemos o sertãopunk como uma ideia que criamos, mas é para todo mundo. A gente deixa as coisas acontecerem. Já tivemos eventos de faculdade, prêmios literários, blogs que nasceram do sertãopunk”, diz Alan de Sá. Uma das atividades recentes foi um curso no Sesc Pompeia, em São Paulo, para promover o conhecimento sobre o assunto.
Outro projeto em andamento é a coleção “Budega Sertãopunk”, realizada pelo grupo Caju de Ouro e editada por Chico Milla. Obra está prevista para ser lançada no segundo semestre deste ano na Amazon. “Serão oito e-books com preços acessíveis lançados no segundo semestre deste ano. Escritos, editados, revisados e ilustrados por nordestinos”, indica o editor.
Aconteceu, galera!
Estamos de cara nova (logo por @piclessaboia), nome saído do forno e planos pra dominar o mundo.
Mas, embora tenhamos trocado o nick, amamos o nome Budega SertãoPunk o suficiente pra lançar nos próximos meses uma coleção de contos SertãoPunk. E é o que faremos. pic.twitter.com/qdsVy26mh9
Alguns nomes já foram confirmados, como ewa nïara, multiartista e pesquisadora travesti. Cearense, ela faz mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Outro escritor é Rafael Brasileiro, também do Ceará, que escreve a obra “O Pacto” e narra a história de uma família de classe média em meio a uma nova guerra mundial.
Também há pessoas de mais lugares do Nordeste. “Auryo Jotha, piauiense que depois de acumular prêmios e indicações, lançará conosco o ‘From United States of Piauí’, livro onde vai explorar seu bairrismo ao máximo, e Mariana Madelinn, poeta e prosista que desde 2009 vem ganhando bastante espaço no cenário baiano. Sou suspeito, mas digo sem receio: só nome de peso”, ressalta Chico Milla.
G. G. Diniz, precursora do movimento, brinca sobre os próximos passos: “o futuro do sertãopunk é a dominação mundial”. Mas ela comenta que, seu maior objetivo, é que o movimento alcance outras mídias e expressões artísticas. Um dos exemplos foi o curta-metragem “2020”, do cearense Oziel Herbert, que integrou a programação do 31º Cine Ceará.
Sertãopunk para além da literatura
Mariana Teixeira, co-fundadora do estúdio Kibo e pesquisadora de sertãopunk e história da arte latina na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), é uma das artistas que leva o movimento para além da literatura. Influenciada por G.G. Diniz, Alan de Sá e Alec Silva, voltou seu olhar para as artes visuais.
“Observei paralelos entre a construção literária do que seria o Nordeste e a narrativa visual adotada pelo discurso oficial da história da arte. Portanto, para reverter, ou, pelo menos, oferecer novas possibilidades estéticas, inserir o sertãopunk nas artes visuais se faz uma questão política”, reflete.
“Para além de se firmar como uma escola que visa padronizar representações das experiências de ser nordestino, o movimento propõe uma maneira de olhar para a própria realidade com frescor: não há uma fórmula para criar pinturas dentro do gênero, ao contrário do que ocorreu ao longo da tradição pictórica, porque qualquer tentativa de homogeneizar vivências, seja estilística, metodológica ou técnica, está fadada a recair no epsitemícidio (destruição de saberes não assimilados pela cultura branca e ocidental)”, ressalta.
De acordo com ela, o sertãopunk especula sobre o futuro a partir de cenários que derivam das ações capitalistas e coloniais que o Brasil vivencia na realidade atual. “Como estaremos em 2040 depois da devastação de territórios indígenas no sul da Bahia? Como ficará a situação após o crescimento da intervenção das startups internacionais nas cidades do interior? E a exploração de chumbo em Santo Amaro? Como podemos apresentar panoramas utópicos sem antes pensarmos num percurso para chegarmos a uma sociedade igualitária e menos danosa aos nordestinos, suas cidades e biomas?”, questiona.
Um dos trabalhos de Mariana Teixeira utiliza elementos do sertãopunk para retratar a própria trajetória familiar. Na ilustração “Memórias de Casa”, que foi feita para o concurso Topia 2022, ela foge de retratos brasileiros para mostrar a vida de sua família, que se conecta à Bahia e a Sergipe.
Foi uma obra pensada em contraposição ao modernismo paulista, que teve como seu grande marco a Semana de Arte Moderna de 1922. Para ela, esse movimento exotificou o Nordeste e apagou o pioneirismo de artistas como Cícero Dias e Carlos Bastos. “A lógica dita antropofágica consistia em apropriar-se de culturas ao longo do território brasileiro e colocar tudo no pacote do que viria ser uma identidade nacional segundo a visão burguesa de estudantes paulistas”, opina.
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