Como a queda da estátua Iracema Guardiã afeta o debate sobre a arte pública

Exposto na Praia de Iracema, o monumento caiu na tarde desta terça-feira, 3, no calçadão da Beira-mar. Estátua é um dos principais cartões postais de Fortaleza. O cearense Zenon Barreto (1918-2002), criador da obra, morreu há 20 anos e, ao longo de sua vida, defendeu a preservação do patrimônio e da arte pública

17:21 | Mai. 03, 2022

Por: Luiza Ester
"Iracema Guardiã", monumento em homenagem à literatura do escritor José de Alencar, caiu na tarde desta terça-feira, 3 de maio de 2022, ano em que a morte de Zenon Barreto, criador da obra, completa duas décadas (foto: Barbara Moira)

O monumento conhecido como “Iracema Guardiã”, um dos principais cartões postais de Fortaleza, no Ceará, caiu na tarde desta terça-feira, 3, no calçadão da Beira-mar. Depoimentos de pessoas que passavam pelo local dão conta de que a ação de um vento forte teria ocasionado a queda. Em nota, a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) informou que a estátua será armazenada em espaço adequado. Após o procedimento, será produzido um laudo sobre o que ocorreu e o que precisa ser feito, com o intuito de realizar o trabalho de restauro do patrimônio.

Até então exposta na orla da Praia de Iracema, a obra foi criada por Zenon Barreto (1918-2002), um dos maiores nomes das artes plásticas do Estado. Jacqueline Medeiros, pesquisadora, curadora da obra de Zenon, responsável pelo acervo do Banco do Nordeste (uma das instituições com conjuntos representativos do artista) e organizadora da publicação digital "Salvador Daky, Zenon Barreto", repercute como a queda do monumento afeta o debate sobre a arte pública em Fortaleza.

"O manual básico de obras de arte indica que uma obra de arte, sobretudo instalada em área externa, requer vistoria e manutenção sistematicamente para prevenir corrosão, rachaduras, empenas, etc. Os órgãos públicos precisam lembrar disso. A própria Iracema já passou por algumas manutenções por roubo do arco em 2002 ou deterioração em 2012, a última. Não sei exatamente a razão do dano, mas também não tenho informações sobre vistorias ou manutenções preventivas", afirma Jacqueline ao O POVO.

Símbolo de Fortaleza

A pesquisadora acrescenta: "Iracema é o símbolo de Fortaleza! Está presente em milhares de reproduções, do pequeno artesão a grandes empresas, quando querem se instalar na cidade, além dos turistas. Transformou-se em ícone que reflete a braveza das cearenses".

Em 2022, a morte do artista plástico Zenon Barreto completou 20 anos. O artista sobralense morreu por complicações de um enfisema pulmonar, aos 84 anos, em 18 de janeiro de 2002. Combativo pelo direito à arte pública e defensor do patrimônio histórico, ele criou a “Iracema Guardiã” em homenagem à literatura de José de Alencar. O artista também esteve na revitalização da casa do escritor, em Messejana.

Um breve passeio pela história do monumento pode revelar os entraves sobre sua conservação. Zenon idealizou "Iracema" ainda na década de 1960, quando um concurso da Cidade buscava selecionar obras de artistas em homenagem à personagem indígena de José de Alencar, protagonista do romance “Iracema: lenda do Ceará” (1865). A maquete da obra, projetada por Zenon em 1965, foi, inclusive, exposta na Galeria Ser, segundo registros do O POVO.

A disputa, no entanto, agraciou José Corbiniano Lins, artista plástico pernambucano. À época, o já aguerrido Zenon se mostrou insatisfeito com a decisão e, inclusive, criticou a forma como os elementos estavam dispostos no monumento de Corbiniano. A obra ganhadora do concurso está exposta na Praia do Mucuripe.

O monumento levou mais de 20 anos para ficar pronto. A obra foi inaugurada em 1996 como "Iracema", quando a Prefeitura de Fortaleza resgatou o projeto de Zenon por ocasião dos 25 anos da fundação do bairro Praia de Iracema. Ao fim, não ficou exatamente como Zenon queria. Em entrevistas ao O POVO, o artista imprimia sua sinceridade. Nos registros das páginas impressas deste jornal, ele falou do aborrecimento com a execução do arco da “Iracema Guardiã”.

Em 2002, a obra "Iracema" foi reinaugurada como “Iracema Guardiã”, em homenagem ao recente falecimento de Zenon e  em celebração pelos 276 anos de Fortaleza.

O monumento passou por diversos episódios de vandalismo ao longo de sua história, chegando a perder o arco e as mãos. Em outubro de 2012, ano que marcou os dez anos sem Zenon, o escultor Franzé D'Aurora assinou a reforma do monumento. A estátua ganhou um revestimento na cor bronze, com curvas e traços diferentes da obra original. O resultado da revitalização é justamente a Iracema Guardiã que caiu nesta terça-feira, 3.

Por ocasião dos 20 anos de morte de Zenon, a pianista Nara Vasconcelos, nora do artista e diretora internacional do Zenon Instituto Cultural — instituição sem fins lucrativos presidida pelo violonista Frede Barreto, filho único de Zenon — lembrou ao O POVO a saudade do artista e a relevância de sua estética modernista, da sua capacidade combativa e do apreço pela coletividade.

Leia mais | Confira especial sobre os 20 anos de morte do criador da "Iracema Guardiã"

"Muito precisa ser feito pela divulgação de sua obra, notadamente pelas instituições públicas do Ceará, a começar pela mera placa de identificação da mais conhecida e icônica, a Iracema Guardiã", revela Nara. Segundo a pianista, “Iracema” é, “possivelmente, a própria expressão da grande saudade que Zenon nos deixou, cunhada eloquentemente naquela imagem de linhas simples e densas”.

A artista reinvindica: “É impossível não associar essa saudade a seu grande amigo, o agitador cultural Cláudio Pereira. A Prefeitura de Fortaleza precisa honrar esse legado, fazendo constar junto àquela obra os dados do seu autor”.

Precursor da arte urbana no Ceará

De acordo com a museóloga Graciele Siqueira, “Zenon retratou, por meio de sua escultura modernista, um dos cartões postais mais conhecidos do Ceará. Ele imaginou e deu forma, a partir da literatura de José de Alencar, a uma peça presente no imaginário da cidade e do turismo local”.

Graciele é diretora do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc), que conta com 20 obras de Zenon. A museóloga acrescenta: “Qual fortalezense não conhece Zenon? Talvez haja ainda um desconhecimento em relação ao nome dele... mas a sua obra pública é de conhecimento público. Ressalta-se aqui as inúmeras restaurações e intervenções feitas na obra com fins de preservação, mas causando a longo prazo muitas perdas da identidade do projeto original. Considero Zenon um dos artistas cearenses precursores do movimento de arte urbana no Ceará. Eclético e versátil na sua atuação artística, está presente nos museus e galerias, mas também na rua”.

Mais sobre Zenon Barreto

O lançamento do livro digital “Salvador Daky, Zenon Barreto” marcou os 20 anos da morte do em janeiro deste ano. Ao longo da carreira, Zenon não só falou sobre suas obras ao O POVO, como também construiu uma coluna semanal: a "Museu". Quem assinava era Salvador Daki, um pseudônimo com alusão humorística e regional ao espanhol Salvador Dali (1904-1989). No espaço, além de divulgar as artes cearenses, Zenon cobrava o poder público pela difusão da cultura.

Com escritos do artista sob seu pseudônimo, além de cartoons e charges, os volumes de “Salvador Daky, Zenon Barreto” estão disponíveis na plataforma on-line do selo editorial Pano de Roda. A organização é da pesquisadora Jacqueline Medeiros, com apoio do Zenon Instituto Cultural.

Em janeiro deste ano, também foi anunciada a cessão de direitos de imagem da "Iracema Guardiã" pela família de Zenon à Casa de Vovó Dedé, instituição sem fins lucrativos que atua no fomento à cultura entre crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social da Barra do Ceará e imediações. O diretor da Casa de Vovó Dedé, Wagner Barbosa, celebrou: "Zenon é um dos maiores estilistas da arte contemporânea brasileira. Muito está embutido nesse ato: a riqueza cultural do povo brasileiro, a personagem feminina mais decantada da nossa literatura, a genialidade do magistral Zenon, que soube tão bem passar a alma que José de Alencar criou para a matéria que se impõe como um dos mais icônicos símbolos de Fortaleza".

O Zenon Instituto Cultural, sediado em Fortaleza, difunde a obra de Zenon e vários segmentos culturais. A instituição foi oficializada em 2012, a partir da morte da viúva, a professora e pianista Maria Helena Barreto, quem conectou Zenon e família também à música. De lá para cá, a iniciativa realizou diversas ações, incluindo na Bulgária, onde os herdeiros residem. Em 2021, o instituto iniciou a implantação de um núcleo em Sobral, terra natal do artista.

Articulação artística

Zenon da Cunha Mendes Barreto nasceu em 31 de dezembro de 1918, no município cearense de Sobral.
Ao longo da carreira, iniciada aos 31 anos por "recomendação médica" após sofrer um acidente na Escola Militar do Ceará, Zenon foi figura constante na articulação das artes cearenses. O artista foi premiado em diversos eventos, como Bienal Internacional de São Paulo, Salão de Artes Plásticas do Rio Grande do Sul e, especialmente, o cearense Salão de Abril.

Junto a Ademir Martins, Estrigas, Antônio Bandeira, Sérvulo Esmeraldo, Dodora Guimarães e mais artistas, compôs a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP) e, a partir da entidade, integrou um dos maiores movimentos artísticos do Ceará. Foi, inclusive, o único cearense a participar da confecção dos vitrais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, ao lado de nomes como Cândido Portinari e Tarsila do Amaral.

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