10 anos de Avenida Brasil: da nova classe média aos memes

A novela "Avenida Brasil", lançada há uma década na TV Globo, levou as classes populares para o centro da trama principal

10:00 | Mar. 19, 2022

Por: Clara Menezes
Adriana Esteves e Débora Falabella interpretaram, respectivamente, Carminha e Nina em 'Avenida Brasil' (foto: Estevam Avellar/ Globo)

Esqueça os vilões maléficos e os mocinhos que sofrem do início ao fim sem nunca perder sua bondade. Deixe de lado aquelas histórias que focam somente na classe alta e concedem papéis secundários aos mais pobres. Ignore um pouco Leblon e Copacabana. Desprenda-se das características óbvias que sempre percorrem as tramas de ficção da televisão. O que sobra? Uma infinidade de novas possibilidades. Por décadas, as grandes emissoras investiram em produções que mostravam um Brasil irreal para a maioria da população.

Nos enredos, os ricos eram os protagonistas, e parecia não existir um País fora daquele contexto privilegiado. Mas, assim que a TV Globo colocou em evidência personagens de classes populares, o sucesso foi instantâneo. “Avenida Brasil”, uma das precursoras dessa mudança de olhar das telenovelas, completa uma década neste ano e continua sendo um dos trabalhos mais lucrativo da história da emissora.

De acordo com a Diretoria de Negócios da Globo, 132 países compraram os direitos de exibição da novela. E, em 2012, o lucro estimado pela revista estadunidense Forbes era de R$2 bilhões. A popularidade foi tanta que, na exibição do último capítulo, a então presidente Dilma Rousseff mudou seu calendário de trabalho. Na noite da transmissão, ela estaria presente no comício de Fernando Haddad, que foi adiado para o dia seguinte, porque os políticos acreditaram que o público não participaria do evento político - já que a maioria estaria assistindo à final da trama.

“Em ‘Avenida Brasil’ cerca de 80% das personagens da novela representavam a chamada ‘nova classe C’, que, na época, referia-se a uma parcela significativa de brasileiros que crescia exponencialmente, ou seja, retratou um público consumidor importante no cenário socioeconômico daquele momento histórico. O nome da telenovela já indica essa busca por retratar uma identidade brasileira mais plural, porque a Avenida Brasil é uma das rotas mais extensas do país, com quase 59 quilômetros e que passa por 26 bairros, liga a Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro ao centro”, explica Adriana Pierre Coca, doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-doutora em Jornalismo e Estudos Midiáticos pela Universidade Fernando Pessoa.

Muitos já devem conhecer o texto escrito por João Emanuel Carneiro, mas aqui está uma breve introdução: Rita (interpretada por Mel Maia na infância e Débora Falabella após se tornar adulta) era uma menina quando uma série de tragédias aconteceu em sua vida. Sua madrasta, Carminha (Adriana Esteves), arquiteta um plano para roubar o dinheiro de seu pai, que acaba sendo atropelado por um jogador de futebol em ascensão. Sozinha, ela é enganada pela mulher e abandonada em um lixão sob os cuidados de Nilo (José de Abreu), um homem que explora o trabalho de crianças. Ao se tornar adulta, a protagonista está decidida a se vingar do mal que lhe fizeram.

Entretanto, na trajetória da antagonista Carminha, várias coisas também mudaram. Ela, por exemplo, se casou com Tufão (Murilo Benício), o famoso atleta do Flamengo, e teve uma filha. Agora, leva uma vida de muitos luxos, sem nunca esquecer Max (Marcello Novaes), o amante que lhe ajudou desde o início a executar seus planos. Aos poucos, seu passado começa a ser revelado para os espectadores, que passam a entender suas motivações e frustrações.

e vamos de cena icônica da carminha falando "toca pro inferno motorista"#AvenidaBrasil #OiOiOi101pic.twitter.com/MehY9GHIDK

— MM PARA SEMPRE EM TODOS OS CANTOS (@eumaluma) February 24, 2020

E, nesta novela, a construção das personagens é diferente do que os espectadores costumavam ver. Rita, considerada a mocinha, podia ser odiada por grande parte do público por causa de seus métodos e egoísmo. Já Carminha, apesar de ser a vilã, era carismática e expansiva.

“Há um ruptura de sentido evidente nas duas protagonistas, a Carminha e a Nina, que são mulheres determinadas e ambíguas. A vilã, a Carminha, passa a ser adorada pelo público. Ela é maldosa, sem escrúpulos, mas é carismática e cômica. Já a Nina, de tão focada na sua vingança, acaba usando métodos duvidosos para alcançar o seu objetivo. Ela é dissimulada, também engana, trapaceia e chega a abrir mão do seu grande amor, um amor que carrega desde a infância, e faz isso para conseguir o que quer. Há um padrão maniqueísta que é quebrado”, cita a pesquisadora Adriana Pierre Coca.

Estrutura da narrativa

Uma quebra de paradigmas semelhante pode ser identificada com a própria estrutura da narrativa: os arcos dramáticos, que costumam perdurar por muitos episódios nas novelas, são facilmente resolvidos em algumas horas. O foco é nas histórias dos personagens, não apenas na trama.

“Essa duplicidade ou instabilidade (dos personagens) produz reflexos diretos na estrutura diegética (dimensão ficcional de uma narrativa), na circulação de efeitos de sentido e nos consequentes processos de identificação/repulsa da audiência em relação a tais figuras; além de favorecer, por outro lado, um modo de produção não-linear e incorporar outras alterações formais”, ressalta Sandra Fischer, doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora em Cinema pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Do Divino à Avenida Brasil

A maioria dos arcos narrativos tem uma mesma ambientação: o Divino, bairro fictício no Rio de Janeiro. É lá que está a mansão de Tufão e Carminha, o salão de beleza de Monalisa, a sede do Divino Futebol Clube e a loja de Diógenes. Neste subúrbio, as pessoas colocam cadeiras de praia e isopor cheio de cerveja na calçada para fazer fofocas da vida alheia. Ali, as discussões são realizadas dentro e fora de casa. E, por meio dos contrastes e dos exageros do cenário, uma situação é questionada: enquanto os novos ricos tentam apagar seu passado para se submeter à riqueza, a classe média emergente se orgulha de suas origens.

“Depois de ‘Avenida Brasil’, temas e personagens mais populares passaram a ocupar com mais desenvoltura as narrativas ficcionais, não só, mas os programas de televisão de modo geral. Isto é, deixou de ser uma ruptura o protagonismo desse público na grade de programação televisual. Tanto é que, anos depois, quando a telenovela ‘I Love Paraisópolis’ foi ao ar na TV Globo, essa construção narrativa de protagonismo já não era mais considerada como algo inovador”, identifica a professora Adriana Pierre Coca.

A Avenida Brasil da novela e da vida real

Sandra Fischer, doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e autora do artigo “Avenida Brasil: estratégias narrativas e efeitos estéticos”, traça paralelos entre a avenida Brasil - uma movimentada via de acesso do Rio de Janeiro - com a novela em artigo exclusivo para O POVO. Confira:

A Avenida Brasil, movimentada via de acesso que conecta a Zona Norte e a Zona Sul da cidade, é uma via urbana familiar e largamente utilizada pelos habitantes do Rio de Janeiro, além de ser frequentemente mencionada em noticiários da mídia impressa e televisiva, razão pela qual é referência conhecida para boa parte da população do País.

Todo tipo de gente transita pela Avenida Brasil. Ali, deslocamentos cotidianos e corriqueiros convivem com o extraordinário e o excepcional, articulando e conectando o previsível e o inusitado. Acidentes de trânsito envolvendo pedestres, ciclistas, passageiros e motoristas costumam complicar o fluxo do tráfego. Motocicletas e utilitários, automóveis de luxo e carros populares, coletivos urbanos e ônibus partindo em viagem para outras localidades, caminhões, caminhonetes.

Tais têm lugar no cinza quase sempre incandescente da via expressa – que serve também de palco para todo tipo de crime: pequenos e grandes assaltos, sequestros relâmpagos e não-relâmpagos, tráfico e comércio de entorpecentes, e por aí afora.

Metonímica e metaforicamente, a Avenida Brasil apresenta uma espécie de retrato do Brasil. Funciona como, configura, diz algo do cenário sociopolítico e econômico em que se assenta o País – tanto no momento em que “a telenovela Avenida Brasil” foi exibida quanto na atualidade.

Tal funcionamento, por sua vez, alinha-se à questão eminentemente contemporânea de as narrativas abrirem múltiplas e simultâneas perspectivas, facultando a pluralização e o intercâmbio de papéis e lugares sociais. De forma atrelada às consequentes e sucessivas variações da máscara ou modo de se dar a ver das personagens nos diferentes formatos ficcionais, o múltiplo e o cambiante revelam-se como constituintes do foco narrativo privilegiado na ficção televisiva que se exibe nas telas, telinhas e telonas dos aparelhos de baixa ou alta definição, encontráveis na grande maioria dos mais e dos menos abastados lares brasileiros.

E não só dos lares, diga-se: cada vez mais ônibus e automóveis, bares e restaurantes, salas de espera e estabelecimentos comerciais dos mais variados contam com televisores sempre ligados (isso para não falar das telas de computadores, telefones celulares, notebooks, tablets e outras invenções congêneres), fundando, definindo e formatando o cotidiano das pessoas.

Relação com a internet

“Avenida Brasil” também se expandiu para as redes sociais e influenciou as discussões que aconteciam entre os usuários na época. A hashtag “#oioioi”, que fazia referência ao refrão da música de abertura (“Vem Dançar Com Tudo”, de Robson Moura e Lino Krizz), entrava nos assuntos mais comentados do Twitter. “A meu ver, sinalizou uma nova prática que, com o passar do tempo, se transformou num ritual: comentar as telenovelas nas redes sociais. A telenovela ganhou olhares atentos de um público diverso, com competências e repertórios variados”, afirma a professora Adriana Pierre Coca.

Quando um novo episódio começava, palavras-chave relacionadas à “Avenida Brasil” eram sempre populares. Também havia imagens - reproduzidas até hoje - que mostravam o efeito final do capítulo da novela. Em 2012, a atriz Cacau Protasio chegou a viralizar na internet depois de cantar uma versão de um dos grandes sucessos da banda Aviões do Forró. E, se você navegar pelas redes sociais atualmente, não demora para encontrar centenas de memes com Carminha. A personagem, talvez a mais popular da história, continua a protagonizar dezenas de diálogos entre usuários nas redes sociais por meio de fotos, gifs e vídeos.

A CENA DO TUFÃO DEIXANDO A CARMINHA E ELA GRITANDO INFERNO É TUDO #AvenidaBrasil pic.twitter.com/0dFFDvyfSM

— mika (@newdirectionls) April 14, 2020

Podcast Vida&Arte

O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui.