Que Rei Sou Eu?: lembre a novela que ironizou Brasil pós-ditadura
Novela "Que Rei Sou Eu?", exibida pela TV Globo no fim da década de 1980, estreia no Globoplay nesta segunda-feira, 14; relembre fatos interessantesEm alguns meses, os brasileiros enfrentarão um período que já é recorrente a cada quatro anos: as eleições presidenciais. A população - incluindo quem deve votar pela primeira vez - conhece muitas das situações que tomam conta do Brasil nesse período. As promessas dos políticos, as discussões nas redes sociais e as tensões ideológicas no cotidiano são questões que perpassam o dia a dia do País, mas que se intensificam durante o período eleitoral. Essa votação, imprescindível para a democracia, ainda é relativamente recente em território nacional: foi somente em 1989 que as pessoas tiveram a chance de votar em um presidente depois de duas décadas de ditadura militar.
Naquela época, acirramentos políticos tomavam conta dos debates. José Sarney, responsável pela transição democrática, tinha se tornado presidente depois que Tancredo Neves (1910 - 1985) foi eleito indiretamente por um colégio eleitoral e morreu um mês depois de sua posse. Sua presidência foi marcada por surtos inflacionários e arrochos salariais. Por causa disso, os partidos de direita tinham dificuldade de popularizar um candidato, enquanto os grupos de esquerda emplacavam Lula e Leonel Brizola. Apesar disso, foi Fernando Collor de Melo, um homem que prometia modernizar a economia com a abertura para capital estrangeiro e promover outras políticas neoliberais, que venceu.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Em meio ao momento conturbado, uma novela da Rede Globo se aproveitava da recente liberdade de expressão e dos absurdos da política brasileira para satirizar a realidade. “Que Rei Sou Eu?”, criada por Cassiano Gabus Mendes (1927 - 1993), traçava paralelos entre sua história fictícia e o cotidiano do Brasil. E, a partir desta segunda-feira, 13 de março, ela será lançada no streaming da Globoplay - novamente em um período de conflitos no País, que está prestes a enfrentar as próximas eleições.
A trama havia sido proposta pelo autor ainda na década de 1970, mas foi recusada por causa da censura. Daniel Filho, um dos dirigentes da emissora, primeiro falou com Cassiano para pedir uma novela das oito. “Ao ser consultado, ele foi categórico: 'Eu quero fazer uma história engraçada de capa e espada. Uma sátira'. Achamos absolutamente fora de propósito. Dez anos depois, no final do governo Sarney, Cassiano propõe de novo a mesma história, agora para o horário das sete. Indiscutível o sucesso de ‘Que Rei Sou Eu?’. Mas será que teria êxito no final da década de 70?”, escreveu Daniel no livro “O Circo Eletrônico: Fazendo TV no Brasil”
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, também um dos dirigentes da Globo, recusou. O motivo era simples: “Roque Santeiro” já havia sido proibida pela censura e era improvável que uma comédia satírica no horário das 20 horas funcionasse. Foi em meados dos anos 1980 que o autor fez uma nova tentativa, aceita em 1988, quando a censura acabou oficialmente depois do estabelecimento da Constituição Federal.
A produção acabou funcionando tão bem que a telenovela foi exibida entre fevereiro e setembro de 1989, com um total de 185 capítulos. Naquele mesmo ano, a narrativa ganhou uma reprise de outubro a dezembro (no período eleitoral) e foi condensada em 50 partes.
Enredo oficial
Talvez você deva estar se perguntando: do que tratava “Que Rei Sou Eu?” para ter sido impedida algumas vezes antes da década de 1980? A história é ambientada em 1786, três anos antes da Revolução Francesa, e acompanha uma série de problemas da família real do reino fictício de Avilan.
Depois da morte do rei Petrus II, o lugar passa a ser governado pela rainha Valentine (Tereza Rachel), uma mulher que não estava preparada para o cargo. Entretanto, o homem tinha registrado o filho bastardo, Jean-Pierre (Edson Celulari), em seu testamento. O jovem era fruto da relação do rei com a camponesa Maria Fromet (Aracy Balabanian) e seria o mais indicado ao trono.
Os conselheiros são cruéis com a rainha, e o único honesto é Bergeron Bouchet (Daniel Filho), casado com Madeleine (Marieta Severo), a única mulher que sabe escrever na região e tem ideais feministas.
Na ausência de um sucessor, os encarregados decidem coroar o mendigo Pichot (Tato Gabus Mendes) como rei e mentir para os governados de que ele seria filho de Petrus II. Tudo isso é idealizado pelo bruxo do condado.
Neste contexto, Jean-Pierre lidera um grupo de pessoas da classe mais pobre que busca instituir uma sociedade igualitária. Defensor de ideais revolucionários, ele ainda encontra tempo para se dividir entre o amor de duas mulheres.
Paralelos com a realidade
“Que Rei Sou Eu?” era uma monarquia, mas o enredo traçava paralelos com a realidade de 1989. Em um determinado capítulo, por exemplo, um dos personagens, Bidet Lambert (John Herbert), revela seus planos para o governo: “prometo trabalhar pelo povo, pelos pobres. Vou fazer mais escola, vou trazer mais empregos. Vou mudar a gestão fiscal para acabar com o abismo entre os mais pobres e os mais ricos”.
Depois de tantas promessas, questiona-se sobre a possibilidade da população não acreditar nele. Então reflete: “fazer o quê? O povo gosta de promessas”. Quando outra pessoa pergunta se os ideais são mirabolantes, ele indica: “tive que anunciar que farei grandes obras, que é para as empreiteiras ficarem felizes e financiarem minha campanha”.
Para a telenovela, Chico Anysio chegou a gravar uma participação especial, em que seria o especulador financeiro Taj Nahal, um homem que aplicaria um golpe na bolsa e no mercado de Val Estrite. Ele era inspirado em um caso famoso na época, sobre Naji Nahas, um investidor de São Paulo que protagonizou um escândalo financeiro e respondeu por estelionato e formação artificial de preço na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.
O advogado dele, entretanto, fez um protesto judicial contra a TV Globo e afirmou que o personagem era um pré-julgamento de seu cliente, que ainda não havia sido setenciado pela Justiça. Com isso, a emissora decidiu não exibir a parte de Chico Anysio.
Até a abertura era uma referência óbvia: em oito sequências cômicas, homens aparecem em guerra em diversos conflitos que aconteceram durante a História. Da luta entre vikings aos soldados de Napoleão, o espectador via a vinheta chegar no século XX, com um soldado que cavalgava na segunda guerra mundial.
Entre várias ironias, a crítica ficou mais concreta quando o reino de Avilan foi chamado - pela primeira e única vez - de “Brasil”. Em uma das últimas cenas, Jean Pierre, o grande representante do povo, grita: “Ninguém vai mais explorar o trabalho do pobre. Agora quero que gritem comigo: viva o Brasil!”.
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