Carnaval: o maracatu e as histórias da folia em Fortaleza
Em paralelo aos marcos históricos do carnaval brasileiro, as festividades carnavalescas em Fortaleza também adotaram suas próprias práticas
10:00 | Fev. 26, 2022
No início do século XX, Fortaleza era uma cidade ainda provinciana em relação às outras capitais. E isso também impactava na maneira como os fortalezenses comemoravam as festas de Carnaval. Até o período da belle époque - movimento de importação da cultura francesa para o Brasil -, a Capital conhecia majoritariamente os entrudos, uma comemoração que acontecia entre familiares e amigos, mas não chegava a um público massivo.
Em meados dos anos 1910, a região passou por um crescimento urbano, com novas instituições e edificações. “O Carnaval da belle époque (ou Carnaval veneziano) vai expressar uma dominância dos setores comerciais, ligados à exportação da borracha. Esse Carnaval representa uma maior fidelidade dos cidadãos aos festejos carnavalescos”, explica Vanda Lúcia de Souza Borges, professora do o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e autora da tese de doutorado “Carnaval de Fortaleza: Tradições e Mutações”.
A partir daquele momento, iniciaram tradições como corsos, carros alegóricos, além de expressões artísticas que faziam críticas às políticas vigentes. “Eram festas públicas, feitas com as famílias da classe dominante. Também tinha festas em clubes de elite”, afirma a pesquisadora.
Foi na década de 1930 que Fortaleza passou a ter carnavais de rua, em que a população menos abastada podia não somente assistir, mas também elaborar suas próprias festas. Houve, por exemplo, a criação do bloco Prova de Fogo, em 1935, e o maracatu Az de Ouro, em 1936. “Foi nesse período que surgiu o Carnaval popular. Até então, os eventos eram de iniciativas das classes mais abastadas em nossa cidade provinciana… A festa ganha contornos populares, com participação do povo, que vai dividir o palco com as classes dominantes”, indica.
Além de tirar a exclusividade das pessoas ricas, as agremiações trouxeram uma inovação estética. “O Carnaval de Fortaleza deve ser pensado a partir desse conjunto de influências que vinha das maiores cidades do Brasil. Aqui era uma extensão da festividade que foi se consolidando como uma expressão de caráter nacional e de participação popular, que fundou essa noção de integração e nacionalidade”, avalia Vanda Lúcia.
Segundo ela, o maracatu, por exemplo, inova nas fantasias, nas vestimentas, na dança e na música que eram vistas durante os eventos carnavalescos da primeira metade do século XX. Os grupos, inspirados pela cultura afrobrasileira, tinham o objetivo de valorizar as pessoas negras e sua história no País. No começo, essas manifestações não eram tão bem aceitas pelas classes dominantes, mas foram ganhando seu espaço na imprensa e nas tradições fortalezenses.
“As agremiações que surgiram na década de 1930 e que sobrevivem até hoje dão a identidade do Carnaval de rua de Fortaleza. Não é a maior parte dos brincantes atualmente que integra essas manifestações, porque apareceram outras formas de brincar, como os trios elétricos. Mas, elas constituem a imagem do Carnaval de Fortaleza”, diz.
Vozes da África: 40 anos de Carnaval
O carnavalesco Márcio Santos trocou o samba pelo batuque depois que conheceu o maracatu. Ele já participava de uma escola de samba e era encantado pelo Carnaval e pelas tradições folclóricas. Quando descobriu o Vozes da África, onde atualmente trabalha como vice-presidente, não pôde evitar o encantamento. “Me apaixonei pelo maracatu e sempre me dividia entre o samba e o batuque. Até que eu decidi ficar no maracatu e estou aqui desde 1996”, explica. O grupo do qual começou a fazer parte era tradicional em Fortaleza, porque foi fundado no início da década de 1980 e é um dos responsáveis por tornar a manifestação cultural em um espetáculo.
Com mais de 40 anos em atividade, tudo começou quando intelectuais, escritores, poetas, folcloristas e carnavalescos, sob liderança do jornalista Paulo Tadeu Sampaio de Oliveira, decidiram criar o Vozes da África. A data de fundação era representativa: 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. O nome do grupo também era simbólico, porque fazia relação com o poema homônimo de Castro Alves, que trata sobre as violências e as condições precárias que os negros enfrentaram durante a escravidão.
Na primeira apresentação pública, conquistou o título de campeão do carnaval de rua da capital cearense. O tema do desfile era “Alquatune, a Princesa Africana”, que contava a história da princesa africana que foi escravizada no Brasil e, posteriormente, virou uma importante líder quilombola no Quilombo dos Palmares. Ela, que foi avó materna de Zumbi dos Palmares, consolidou um espaço de resistência com seus conhecimentos estratégicos e políticos.
“No início dos anos 1980, nós tínhamos quatro ou cinco grupos de maracatu. Essa manifestação já estava mais fria. Aqui estavam muito fortes as escolas de samba, mas não existiam tantos grupos de tradição folclórica. Então o Vozes da África foi pensado para não ser somente um espetáculo durante os carnavais de rua, mas que estivesse presente em outros momentos”, explica Márcio Santos.
Por causa disso, a agremiação participou de eventos em outras regiões do Brasil, como Brasília, Recife, São Luís e Florianópolis. O grupo ainda foi para países estrangeiros, como Uruguai, Paraguai, Espanha, Bélgica e Finlândia. Em 2005, por exemplo, representou o País no “Festival Des Folklores du Monde”, na França, e se consagrou como o único maracatu cearense a se apresentar no exterior.
O objetivo é, portanto “quebrar preconceitos”, assim como diz seu vice-presidente. Ao levar a manifestação cultural de origem afrobrasileira para outros lugares e extrapolar os limites do Carnaval, reafirma as tradições que valorizam os negros.
Sobre a importância do maracatu para o Ceará, Márcio Santos comenta: “Durante muito tempo, dizíamos que não existia negro no Ceará. Hoje o maracatu, que é um patrimônio imaterial da Cidade, é uma representação da cultura negra no Estado e quebra essa ideia de que aqui não tem negro. A importância é essa: de reafirmar que nós existimos”.
No atual momento, porém, o carnavalesco identifica todas as dificuldades que o grupo passa para se manter ativo. Com dois anos sem apresentações por causa da pandemia, ele critica a falta de apoio governamental. “Compreendemos a situação que estamos vivendo, mas estamos em uma situação complicada. Vemos um descaso do poder público. Hoje o grupo se mantém por meio de instituições como o Sesc. Temos uma exposição no RioMar Kennedy e estamos procurando outros parceiros. A dificuldade nos ensinou que não podemos só esperar o poder público”, afirma.
Ele e todos os membros sentem saudades do que antes era recorrente: o acolhimento do público, a movimentação do barracão e a vivência diária. Mas, quando todos puderem voltar para a avenida, o Vozes da África já tem seu tema do desfile: água. “No próximo enredo, a gente vai falar sobre a água, para lavar todo esse passado e todas essas coisas ruins. Vamos falar das águas do planeta, do mar, de Iemanjá e de Oxalá”, indica.
E, enquanto o grupo permanece sem suas atividades cotidianas, Márcio Santos persiste em seu trabalho que considera uma missão. “Minha formação, apesar de eu ter uma formação acadêmica em História, foi no barracão. Hoje me reconheço como artista plástico e em várias outras áreas dentro do grupo. É onde me reconstituí como pessoa. O maracatu é a minha vida”.
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