Cearense Julie Oliveira ressignifica o mito de Pandora em cordel feminista

O cordel "Pandora", escrito pela cearense Julie Oliveira, conta a história do mito grego a partir de um ponto de vista feminista

Julie Oliveira se considera uma pessoa de sorte: desde criança, cresceu imersa no universo das palavras. “Na minha casa podia faltar feijão, mas livros nunca faltaram”, brinca. A linhagem explica: seu pai é Rouxinol do Rinaré, também escritor e cordelista. Ele lhe apresentou às obras literárias, às bibliotecas e a histórias inéditas. E, talvez por causa disso, a escritora se tornou uma menina contestadora: “quando eu era criança, muitas vezes, pensava: ‘não gostei do final dessa história. Quando eu crescer, vou mudar. Vou escrever de outro jeito”. Ela levou esse pensamento dentro de si durante sua trajetória e, agora, lança o cordel “Pandora”, que ressiginifica o mito grego a partir de uma perspectiva feminista.

Na história original, Pandora é a primeira mulher que foi criada pelos deuses e tinha o trabalho de agradar os homens. Ela, que se casou com Epitemeu, irmão de Prometeu, guardava um segredo: recebeu uma caixa selada dos deuses, que jamais devia ser aberta. Mas, por curiosidade, abriu a tampa e descobriu que, em seu interior, estavam aprisionados todos os males do mundo, que foram libertos à humanidade. Dentro daquele objeto, restou apenas a Esperança, que deveria ser usada quando todos mais precisassem.

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Em 2008, Julie escreveu o mito pela primeira vez em formato de cordel. “Basicamente eu recontava a história tal qual, sem muita diferença do mito original, mais em um exercício criativo de recontar em formato cordel. Porém, em 2020, logo no início da pandemia, ‘abri meu baú’ e resolvi revisitar textos antigos. Nisso, a menina de 16 anos, agora com 28, não se reconhecia mais naquela história. Senti que precisava reescrever meu conto, dessa vez, apresentando um novo olhar para a história através da minha poesia”, indica.

Essa versão está conectada aos pensamentos de Simone de Beauvoir (1908 - 1986), ativista política, feminista, teórica social e filósofa. “Pensei que o mito de Pandora merecia o olhar de uma mulher, um olhar de quem compreende a importância de contarmos nossas histórias por nós mesmas”, comenta.

Ela afirma que, desde a infância, sentia um incômodo com Pandora. E queria, assim como vários outras obras, repensar seu fim. “Hoje, a este incômodo, eu chamo de machismo. É o machismo estrutural que está entranhado em nossa sociedade, que nos mata e nos oprime, que eu denuncio nessa história”.

“Esse trabalho é uma provocação. Alguém desavisado pode achar que é só mais um texto em cordel, porém, ao mergulhar na história, poderá se perguntar coisas que talvez nunca lhe ocorreram, por exemplo: por que os valores dominantes na história da sociedade humana foram – e continuam sendo – os valores da cultura masculina? Como e de que forma se fundamentou e justificou uma hierarquia entre o masculino e o feminino? Quais as visões e representações encontramos sobre o sentido do ser homem e do ser mulher?”, reflete.

“Pandora” está disponível gratuitamente na internet, por meio do site Calameo. As ilustrações da capa e das outras páginas da obra foram feitas pela xilogravurista Gabrielle Longobardi.

Trabalhos como editora

A trajetória profissional de Julie Oliveira tem uma missão principal: repensar e firmar o espaço da mulher na literatura de cordel. Um de seus projetos, por exemplo, é o Cordel de Mulher, um selo para publicação de autoras. “O Cordel de Mulher surgiu pela necessidade de criar oportunidades de protagonismo para as mulheres cordelistas e outras mulheres ligadas à cultura popular (xilogravadoras, editoras, folheteiras). Muitas vezes, os eventos do gênero e os literários, em geral, contemplam um número de homens muito maior que o número de mulheres, e isso não se dá pela ausência de mulheres no meio”, diz.

O mercado do cordel ainda é um espaço dominado por homens. E, nas histórias mais tradicionais, a figura feminina costuma ser representada através de estereótipos. “Mas, ao contrário do que ainda se pensa, somos muitas, e hoje mais do que nunca. Vale dizer também que a mulher cordelista não é algo tão recente como se pensa, tendo em vista registros datados de 1938, data que possivelmente houve a publicação da primeira mulher cordelista, chamada Maria das Neves Baptista Pimentel. Por causa das questões da época, ela publicou sob o pseudônimo de Altino Alagoano, nome de seu esposo”, recorda.

Entretanto, ela avalia que o cenário atual é diferente em alguns aspectos, porque mulheres cordelistas já conquistaram um espaço considerável. “Há muitas lutas, mas também há muitas conquistas”, pondera. Para ela, o movimento crescente de escritoras em editoras tradicionais ou independentes faz parte de uma mudança de olhar. “São passos que percorremos rumo a um futuro, de fato, mais equitativo. Então, eu vejo esse movimento todo com muita alegria e com a consciência de que são resultados de uma luta secular”, reflete.

O trabalho de Julie também é o de romper os limites da literatura e lutar por uma arte acessível. E, em 2022, esses são seus principais objetivos: “apresentar o cordel em suas múltiplas facetas, rompendo os limites de que a literatura é para ‘estar aqui ou ali’. Eu acredito e trabalho por uma arte democrática e acessível, e, para que isso seja real, é preciso que essa poesia esteja nos lugares mais improváveis. Assim será”.

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