Escritor Oziel Herbert analisa relações familiares em "A Filha Primitiva"
Obra escrita pela cearense Vanessa Passos foi a vencedora da 6ª edição do Prêmio Kindle de LiteraturaO romance "A Filha Primitiva" norteia resenha desenvolvida pelo escritor, fanzineiro e realizador audiovisual Oziel Herbert. A obra literária escrita pela cearense Vanessa Passos foi a vencedora da 6ª edição do Prêmio Kindle de Literatura, divulgada na última terça-feira, 15, e aborda a complexidade das relações familiares. Com formação em escrita criativa, Oziel traça paralelo entre a ficção e realidade. Confira a resenha:
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"Sobre amar odiando"
É raro ver protagonistas tão autênticas como a que Vanessa Passos nos apresenta no romance “A Filha Primitiva”. Acho que só senti algo parecido em "Binti", de Nnedi Okorafor, ou "Lauren Olamina", de Octávia Butler. Mas mesmo assim, nem isso.
Binti demonstra sua força através do carinho. Se torna a melhor amiga de um alienígena que matou todos os seus amigos e, praticamente sozinha, monta um tratado de paz intergaláctico. Lauren vive num mundo profundamente desigual e caótico. Para sobreviver a este mundo ela funda uma religião, um culto que anos depois levará a humanidade até às estrelas. Sua ousadia de sobreviver nos transforma em cosmonautas. Mas em “A Filha Primitiva” temos uma anti-heroína, uma sem nome, uma pessoa dessas com um pouco de maldade, com algumas atitudes imperdoáveis e detestáveis em alguma medida.
Inclusive, acho que ela não tem nome por isso. Pra gente não gostar dela. É uma tentativa da autora de nos distanciar de sua protagonista. De nos colocar na mesma posição, no mesmo patamar de suas vizinha. Estamos postos no parapeito da janela, para julgar. Só que gente, gente de verdade, é sempre um pouco ruim mesmo. E, pelo menos eu, não consigo deixar de gostar dessas maçãs podres. Dessas que dizem que não devemos gostar. Das mães solo, das travestis, das pretas e dos pobres. Essa gente ama odiando e odeia amando. Que vive com uma certa raiva de viver.
E acho que por isso eu gostei tanto dessa pessoa inventada. Dessa criatura de Vanessa, que existe sem existir. Essa filha primitiva me lembra que na vida real, que, como dizia Belchior, é maior que qualquer ficção, não dá pra ter sentimentos simples. “A Filha Primitiva” é uma obra complexa. Angustiante de ler em alguns momentos, pesada e profundamente real. Mas que no finalzinho, consegue deixar um gosto bom, um certo doce na boca da gente. Afinal, dá pra amar odiando. Dá pra atravessar esse mundo infeliz e no final do dia, sentar com quem a gente gosta e ficar bem.
Como Olamina, a mulher sem nome de “A Filha Primitiva” faz algo, tira doce de uma vida amarga. A partir da destruição, ela constrói. Como Binti, a mulher sem nome da obra faz as pazes com seus demônios sem jamais perdoá-los. A partir da ferida, cicatriza ela e as mulheres que a cercam. Mesmo que não queira de fato salvar ninguém, afinal ela não é uma heroína, é uma pessoa egoísta, que só se importa com ela própria que está disposta e tudo para conseguir o que deseja.
Escrever mais que isso me colocaria no perigoso reino dos spoilers. Portanto, vou apenas apontar que Vanessa Passos é cearense, professora de escrita criativa e fortalezense. Que a trama se passa nas nossas ruas, nos nossos bairros e lugares favoritos. A filha primitiva mora no Conjunto Palmeiras, estuda no Campus do Benfica, e namora escondida no bosque Moreira Salles. Este livro é uma das coisas mais impressionantes que li nos últimos anos. Recomendado a todos, todas e todes que amam literatura. Cinco estrelas".
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