Um mês sem Hugo Bianchi: a história, o legado e o futuro do balé no Ceará

Um mês depois de sua morte, a dança de Hugo Bianchi permanece presente em seus alunos e na nova geração de bailarinos do Ceará

10:00 | Fev. 19, 2022

Por: Clara Menezes
Hugo Bianchi é considerado um dos pioneiros da dança no Ceará (foto: Fco Fontenele)

Hugo Bianchi (1926 - 2022) sempre dispensou eufemismos ao falar do trabalho de um bailarino. “Em primeiro lugar, precisa de muita vontade de sofrer”, disse em entrevista ao O POVO, em abril de 2007. Para ele, não há tempo para “farras”, porque o profissional deve focar no alto rendimento de seu corpo. Força de vontade, talento e obediência também são essenciais. Entretanto, o mais indispensável no meio de um mercado em que “hoje em dia todo mundo dá aula de qualquer jeito” é a disciplina. Por causa disso, alguns até podiam considerá-lo grosseiro (não se importava de dividir opiniões), mas foi seu zelo pela conduta que lhe levou a ser um dos pioneiros do balé no Ceará e a viabilizar um mercado para a dança no Estado.

Falecido no último 18 de janeiro, aos 95 anos, muitos conhecem sua história, porém, aqui está uma breve introdução: autodidata e sem oportunidades em uma Fortaleza ainda provinciana, Bianchi seguiu para o Rio de Janeiro. Jovem, não tinha ideia do que esperar na capital carioca. Dormiu na rua, em uma praça, presenciando de perto a violência da cidade grande. Passou fome e, algumas vezes, comeu apenas pão com manteiga no almoço. Quando conseguiu um emprego formal, enviou uma carta para a família. Sua avó lhe respondeu: “arranja um emprego que seja trabalho”, já que o teatro era “coisa de gente desocupada”. Apesar dessa opinião, o restante de sua família apoiava a carreira.

Lá no Sudeste, conheceu importantes bailarinos que lhe guiaram, como Maria Olenewa, David Dupré e Tatiana Eloska. Depois de tantas experiências, quando estava vivendo em um pequeno apartamento em Copacabana, Haroldo Serra bateu em sua porta pedindo que trabalhasse no espetáculo “A Valsa Proibida”. Bianchi deu-se por convencido e retornou ao Ceará, onde fundou a escola de dança Eros Volúsia, que funcionava no foyer do Theatro José de Alencar, na década de 1960.

Até então, existiam duas academias em Fortaleza - uma delas de Regina Passos, outra pioneira. Mas Hugo Bianchi continuou com suas visões e seguia com sua escola mesmo quando o mercado tentava lhe levar para outros caminhos. Recusou, por exemplo, convites para associações e para fazer parte de festas da alta sociedade. “Recusei os convites que me fazia gente da alta sociedade local para festas e reuniões, pois nunca gostei de fazer papel de bobo, e artista quando é convidado para festa de rico é para servir de palhaço. Tem artista que não se incomoda, mas nunca permiti que me fizessem de besta. E, com o temperamento violento que tenho, achei melhor evitar para não ter que me mostrar um grosso”, comentou em entrevista ao O POVO em outubro de 1987.

E, nessa luta diária para fazer da dança um “emprego que seja trabalho”, o coreógrafo nunca enriqueceu. Depois de muitas décadas a frente escola de ballet Hugo Bianchi, formada após o fim da Eros Volúsia, deixou o lado administrativo para descansar. “Só de balé clássico tenho 60 anos. Financeiramente continuo do mesmo jeito. Melhorou um pouquinho, mas só dá pra sobrevivência. Não consegui guardar nada”, afirmou para o jornal em abril de 2007.

Um legado para as artes

O legado de Hugo Bianchi, entretanto, está em seus alunos. Ele formou grandes nomes do balé clássico cearense, que hoje mantêm suas próprias escolas, como Madiana Romcy e Monica Luiza. Suas influências estão presentes também na dança contemporânea com profissionais como Rossana Pucci e Dora Andrade.

“As artes cênicas devem muito ao Hugo. Ele formou várias gerações de bailarinos e educadores de dança. Hoje, algumas das escolas mais tradicionais de dança clássica são conduzidas e lideradas por professores que passaram pelas mãos do Hugo. Goretti Quintela, Monica Luiza, Madiana Romcy… Eu estudei com o Hugo. É importante que a gente reconheça o Hugo como esse formador de bailarinos”, explica Dora Andrade, fundadora da Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescenta (Edisca).

Agora sem o coreógrafo, cabe aos “pupilos” e às próximas gerações manterem a tradição do balé no Ceará. Mas Felix Ramazzotti, coordenador e produtor da escola Hugo Bianchi, ressalta um dos principais temores do artista em relação ao futuro: a preocupação somente por dançar. “Ele perguntava se a pessoa sabia quem era o personagem que interpretaria no balé, e muitos bailarinos não sabiam que personagem estavam interpretando. Os alunos estão muito preocupados em fazer aula e dançar, mas não procuram saber quem é o personagem, o tipo de balé, a coreologia (registro escrito de uma coreografia, como uma partitura). Isso lhe preocupava muito”, pontua.

“Hugo olhava para uma criança e dizia: ‘você vai ser boa dançando Carmen (ópera de Georges Bizet)’. Ele sabia isso só de olhar. Isso é um talento que não vejo na geração pós-Bianchi. Hoje em dia, é necessário estudar a história da coreografia para transmitir no palco os sentimentos da dança, do personagem. Só sabe disso quem acompanha e quem pisa no palco”, revela.

Disciplina e o balé

Hugo Bianchi andava pelos corredores da escola com uma espécie de bastão para corrigir a postura de seus alunos. Chamava atenção para a posição dos braços e dos joelhos. Reclamava, às vezes, do horário que os estudantes paravam para beber água. Exigia cores padronizadas nas roupas. Não admitia atrasos, nem desleixos em sala. Ele seguiu exigente por toda sua vida. E todos lembram dele dessa forma, inclusive, levam para suas carreiras essa disciplina que muitos conheceram na infância.

Dora Andrade, por exemplo, lhe teve como primeiro professor, quando tinha apenas dez anos. “Eu era uma criança, comecei a dançar com ele. Acho que minha mãe viu quem estava trabalhando com dança na Cidade e me matriculou na escola do Hugo. Como o Theatro José de Alencar era um lugar central, fui estudar lá”, recorda.

“A coisa mais forte sobre o Hugo é a questão do rigor e da exigência técnica. Tínhamos uma relação de professor e aluna. Ele dava aula com uma baqueta e, quando via alguém fazendo algo errado, mostrava como fazia. Era um homem belíssimo e um bailarino extraordinário. A exigência dele com os bailarinos foi algo muito marcante na minha vida, foi algo que vivi na experiência e levei para todos os ambientes da minha vida. Tenho muita gratidão por ele”, indica.

Janne Ruth, que tem uma escola de dança e também é diretora de festivais no Ceará, cita memórias semelhantes. No início dos anos 1970, ele promoveu algumas audições em colégios de Fortaleza para “recrutar” pessoas que tinham talento e distribui-las em alguns centros sociais urbanos. Ela foi estudar com Goretti Quintela em uma instituição no Pici.

“Os professores dele que davam aula. Ele dava aula para turmas mais avançadas. A gente tinha um pouco de medo dele, porque era muito exigente. Então, minha formação acadêmica com ele foi pequena. Mas era o mesmo método, a mesma aula. Às vezes, ele passava por todos os centros e observava, levantava e dava algumas dicas”, diz.

Esse contato virou uma amizade somente uma década depois, por meio de uma pessoa conhecida em comum: Goretti Quintela. “Quando ele morou com a Goretti, surgiu daí uma grande amizade. Ele nunca perdia um festival da minha escola e me elogiava. A gente tinha uma relação de amigos”, lembra Janne Ruth.

Nos eventos de dança que organizava, Hugo Bianchi aparecia e sentava sempre na mesma cadeira. Todos sabiam quem era aquela figura de cabelos brancos que permanecia no local de sempre. E ele também tinha passe livre para transitar pelos festivais organizados por Janne.

Para ela, o balé no Ceará é um mercado muito forte, em parte, por causa dele. “O Hugo Bianchi que trouxe o balé clássico na íntegra pra cá. Ele era fiel aos repertórios, ao processo de formação. Batia na mesma tecla. O método era incrível. Não tem como brincar de balé por conta desse legado que ele deixou para a gente”, reflete.

A escola como legado

Felix Ramazzotti trabalhava no Centro de Fortaleza quando, em algum dia de 1996, passou em frente ao Theatro José de Alencar. “Quando tem fila, cearense quer saber o que é”, brinca. Curioso, aproximou-se do local e perguntou o que estava acontecendo. “O homem me respondeu: ‘é um espetáculo de balé, você já assistiu?’. Eu não estava fazendo nada e disse que ia assistir. O homem me deu o ingresso de graça”, recorda.

No momento em que a apresentação acabou, Felix percebeu que a pessoa que tinha lhe dado uma entrada gratuita era a dona da escola. “Decidi que, quando terminasse, daria um jeito de falar com ele. Todo mundo estava desmontando o palco quando fui agradecer pelo ingresso. Ele disse: ‘ah, ajude os meninos ali a tirar as coisas’. E eu respondi: ‘tá bom’”, evoca.

O coreógrafo deu 10 reais pelo auxílio e perguntou se ele poderia fazer o mesmo no espetáculo seguinte. “Fiquei encantado com aquilo. Pensei que era ali que amarraria meu burro. Comecei uma amizade com ele, a fazer projetos… Na época, eu não trabalhava diretamente na academia e não era uma figura presente no lugar”, diz.

Em 2000, Hugo Bianchi precisou de uma nova secretária pessoal e contratou a esposa de Felix. “Está lá até hoje”, orgulha-se. Alguns anos depois, ele virou um dos sócios e começou a comandar a parte administrativa da academia. “No início, não entendia o que estava acontecendo. Ainda não entendo o que está acontecendo. Nunca fiz aula de dança, mas tenho esse trabalho direcionado”, explica.

Para Ramazzotti, o legado que o coreógrafo deixou para sua escola foi a da disciplina e da humildade. “Ele martelava esses dois mandamentos na cabeça. Se você não tem disciplina, não faz aula direito e não faz um bom espetáculo. Era sempre a questão da disciplina, da humildade e do respeito ao profissional. A escola não só forma bailarinos, mas forma cidadãos com disciplina e respeito a todos os profissionais”, defende.

Hoje, a instituição que leva o nome de Hugo segue em frente com seus ensinamentos. “Sentimos falta de seu corpo físico, mas sabemos que ele está ali. Os ensinamentos que ele nos deixou ficaram presentes nos professores e nos alunos. Tudo vai continuar porque é o que ele amava fazer e é o que ele nos ensinou a amar. A gente vai continuar”, diz o homem que, no fim da década de 1990, amarrou seu burro em um mercado desconhecido.

Homenagem a Hugo

A partir de agora, os esforços são feitos para não esquecer Bianchi. Nos passos de dança, na maneira de ensinar e na trajetória de seus “pupilos”, haverá sempre uma lembrança de seu legado. E, em abril deste ano, na data que marca seu aniversário, iniciará a Mostra Bianchi, um evento anual para premiar as melhores apresentações de dança.

A Associação das Academias de Dança do Ceará, que tem dezenas de estabelecimentos filiados, é a organizadora. “A gente só morre quando é esquecido. Vamos homenageá-lo. Haverá um espetáculo para as melhores apresentações do ano. As escolas associadas vão ser homenageadas e terão esse selo ‘Hugo Bianchi’ de excelência”, explica Felix, que também é presidente da associação.

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