Sol é vaiado 80 vezes na Praça do Ferreira para relembrar episódio histórico

Em comemoração às oito décadas da vaia ao sol, um dos momentos mais conhecidos da história do Ceará, a Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza, recebeu evento na manhã deste domingo, 30. O astro rei foi vaiado mais de 80 vezes, exaltando a gaiatice cearense

18:45 | Jan. 30, 2022

Por: Luiza Ester
Os 80 anos da "Vaia ao Sol" na Praça do Ferreira, evento organizado pelo humorista Jader Soares, o "Zebrinha", é uma iniciativa do Escritório do Rio, com apoio do Teatro Chico Anysio, do Museu do Humor Cearense, da Associação dos Humoristas Cearenses (Asso-h) e do Sindicato dos Humoristas (Sindihumor) (foto: Thais Mesquita)

“Iêêeeêêii!”. A vaia cearense era o que mais se ouvia na manhã deste domingo, 30, na Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza. O “sol quente do meio-dia” — como se fala nesta Terra da Luz — foi vaiado mais de 80 vezes. Pessoas de todas as idades se reuniram a céu aberto, no coração da Capital, para exaltar a gaiatice cearense. Uma roda de gente, com cerca de 50 pessoas, se estabeleceu bem ali, próximo ao tradicional relógio da Coluna da Hora. Teve competição da melhor vaia, lançamento de cordel, palmas e, óbvio, muita gargalhada. Os curiosos que se aproximavam, aos poucos, passavam a também entoar o grito estridente da vaia: “Iêêêêeeeeeeeêêêêii!”. Talvez nenhuma palavra consiga simbolizar por completo esta “molecagem” genuinamente cearense.

Era 30 de janeiro de 1942, quando fortalezenses resolveram vaiar o sol, naquela mesma praça histórica. Sem hora marcada ou combinação prévia — coisa da espontaneidade desta gente mesmo. À época, um “pé-d'água” caía do céu por uns três dias. Quando o astro rei deu as caras após as intensas chuvas, ouviu uma ressoante vaia. O episódio se tornou um dos causos mais conhecidos da história do Ceará. Não à toa, quem é cearense ou admirador da cultura do Estado sabe bem a sonoridade inconfundível do grito local.

Após 80 anos, a história meio que se repetiu neste domingo, 30, quando o sol apareceu em meio à temporada de chuvas e céu nublado na Capital. Em comemoração às oito décadas do episódio, a Praça do Ferreira recebeu evento com brincadeiras, piadas, causos, profissionais do riso, lançamento do “Cordel 80 anos da Vaia” (de autoria do humorista Jader Soares, o “Zebrinha”, organizador da programação) e Festival da Vaia ao Sol. Os finalistas da competição receberam não só um certificado especial, como também uma “grande duma” vaia.

A atriz Sandra Durand foi coroada campeã do Festival da Vaia. Foram tantas que, ao falar com a reportagem, até lhe faltava o fôlego. Sobre o 1º lugar na competição, ela disse: “Estou muito feliz, num domingo, na Praça do Ferreira, com uma ruma de gente… Pensei que não viesse esse povo todo, porque o comércio está fechado, mas a galera gosta, né!? Essa praça é show. Eu amei, foi show!”.

O menino João Pedro Soares, que estava acompanhado do pai, mesmo tão novo, encantou o público com a gaiatice e foi consagrado vice-campeão. Na 3ª posição, o criador de conteúdo digital Rafael Aires.

Um dos responsáveis pelo perfil Modo Cearense no Instagram, Rafael se programou para cobrir o evento, mas acabou "entrando na onda" da brincadeira também. “Nós trabalhamos juntamente com o humor cearense. E esse evento aqui é uma coisa legal pra gente. Viemos acompanhar e ainda botamos o nome na história", comemorou.

O ator e artista plástico Silvinho Gurgel, uma das personalidades emblemáticas da cultura na Cidade, também estava por lá. Vestido em homenagem ao sol, todo de amarelo, chamava a atenção por onde passava. Até participou do Festival da Vaia, mas não chegou à final. Tal hora, durante a classificação para a decisão, o organizador Jader Soares disse, em tom de brincadeira: “Silvinho, pode sair, você já foi desclassificado”. Silvinho retrucou: “Ôxe, vou ficar aqui. A praça é pública!”, arrancando risos de quem estava ali.

“Como ator e figura da cultura que mora nesse Ceará, eu amo prestigiar todos esses nossos eventos, seja de dança, folclore, Carnaval, balé ou teatro. Eu não poderia deixar de prestigiar esses 80 anos da vaia ao sol”, disse Silvinho. O artista soube do evento por uma amiga do teatro. Ao O POVO, destacou o carinho pelo humorista Jader Soares, o Zebrinha, e comentou sobre a escolha do figurino dourado e radiante. “Estou toda de amarelo, tem um raio de sol em cima de mim brilhante… E lógico que eu entrei nesse bom dia! Para poder soltar essa vaia para o nosso sol do Ceará!”.

O ator Nonato Oliveira, aos 70 anos, fez questão de reverenciar: “Isso é um momento único! Só aqui no Ceará que a gente tem essa vaia ao sol. Molecagem cearense é só aqui mesmo que tem, em pleno solzão do meio-dia”.

Resistência

Esta é a terceira vez que Jader Soares organiza o evento. A comemoração já acontece desde as celebrações das seis e sete décadas. Nos 80 anos do fato histórico, o humorista celebra: “A gente não pode deixar a molecagem cearense morrer. Iniciativas simples como essa é que fazem com que o Ceará seja reconhecido naturalmente como um estado moleque. Essa nossa vaia é conhecida até internacionalmente. A gente não podia deixar essa data passar”.

Zebrinha ainda revela: “Eu gostaria de comemorar todo ano, mas isso é um evento que quem faz é o Museu do Humor Cearense, do qual sou diretor. Todo o custo, por mínimo que seja, sai do meu bolso. A gente nunca teve apoio, tanto do estado quanto do município. A gente sente que falta. A pessoa fala ‘Ah, tem uns editais ótimos'. Mas tem umas outras coisas que a gente não consegue estar”.

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O artista recorda o Festival de Mentiras, realizado anualmente no dia 1º de abril. Ali pela rua Floriano Peixoto, no entorno da Praça do Ferreira, havia um cajueiro conhecido por ser o lugar de celebrar o Dia da Mentira. No início do século XX, a população elegia o maior mentiroso. O “Cajueiro da Mentira” era, muitas vezes, um local de crítica. Quando um político fazia uma promessa extravagante, pregavam na árvore um papel com o compromisso anotado — seria para lembrar “da mentira”. Onde existia o pé de caju, próximo à agência da Caixa Econômica, foi colocado uma placa sobre o causo.

Com o Festival de Mentiras, Jader decidiu resgatar a tradição. “No evento, eu dou um real para o 1º colocado, 50 centavos para o 2º e 25 centavos para o 3º. Nada mais é do que uma crítica à falta de apoio”. A vaia ao sol seria como uma extensão desse movimento. Um grito da “resistência moleque” em meio a tempos tão conturbados da vida na Terra.

Patrimônio da cearensidade

“Essa vaia de curva sonora peculiar, que começa aguda na letra ‘i’, lampeja gasguita em um fio de letra ‘e’, partindo como um raio pela letra ‘i’, afirmou-se como patrimônio da cearensidade. Não é uma vaia qualquer, dessas que se limitam a 'Uuuu!' ou 'Fiu fiu!'; a vaia do Ceará é uma unidade linguística autônoma e destoante, praticada por uma gente exclamativa” — bem lembrou o jornalista Flávio Paiva, em sua coluna, na edição do Vida&Arte do último dia 25.

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Molecagem histórica

O causo da vaia ao sol foi documentado por um jornalista do O POVO, que estava a caminho da redação. Em 1942, o jornal era sediado na Praça do Ferreira. “O sol recebeu tremenda vaia”, era o título da matéria. Um trecho diz: “Os alegres circunstantes, olhando para o alto e apontando, começaram uma demonstração estrondosa, vaiando o astro vencido e apagado, naquele momento, num grito uníssono de várias bocas”.

A Praça do Ferreira tem sido palco da “molecagem” cearense há décadas. No local, por exemplo, circulava o advogado, escritor e poeta Quintino Cunha (1875-1943), conhecido por contar diversas histórias de humor típicas do povo da Terra da Luz. Por lá também passeava o bode Ioiô, caprino que “ia e voltava” do litoral à praça, bebia cachaça e levantava as saias de mulheres. No início do século XX, a população, indignada com a política da época, votou no animal para vereador, em forma de protesto. Recentemente, um francês caminhou por uma fita nas alturas, na Praça do Ferreira, e foi aclamado com palmas e a própria vaia cearense.

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