1979: Relembre a trilha sonora do ano da anistia
1979 teve grandes impactos na música brasileira. A diminuição da censura, o maior espaço das mulheres como compositoras e a busca pelo cenário independente foram algumas das situaçõesO ano era 1979. O Brasil iniciava um processo de diminuição da censura política - ainda no fim da ditadura militar - por causa da Lei da Anistia. Na época, exilados políticos puderam voltar ao País, réus tiveram seus processos anulados e presos foram libertos. Uma das que retornaram foi Dulce Maia, produtora cultural, guerrilheira na luta armada e a primeira pessoa banida no regime. Existia, porém, uma contradição, porque a norma negava o perdão para pessoas que foram condenadas e consideradas “terroristas”. Por causa disso, manifestos e atos aconteceram por parte de grupos da sociedade civil com o objetivo de tornar a lei “ampla, geral e irrestrita”, assim como explicitava a publicidade oficial.
Mas os brasileiros já viviam uma certa liberdade política, social e de pensamentos. E a cultura se aproveitou deste momento para produzir conteúdos que traduziam os sentimentos da época. Artistas mostravam suas perspectivas sobre o Brasil do fim da década de 1970; o cenário independente da música efervescia como uma oportunidade para novos nomes surgirem; e as mulheres ganhavam mais espaço na composição e também lutavam por suas próprias pautas.
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A partir das várias situações que aconteciam em um mesmo ano, o jornalista e produtor cultural Célio Alburquerque percebeu que havia algo de diferente neste período e decidiu organizar o livro “1979 - O Ano que Ressignificou a MPB”, que será publicado pela Garota FM no segundo semestre de 2022. “Percebi que tinha alguma coisa de diferente em 1979, por causa da anistia política que ocorreu no país, da explosão do mercado da música independente, com o Boca Livre, que foi algo esplêndido e assutadoramente positivo, além da explosão das mulheres compositoras, particulamente, a Angela Ro Ro e a Fátima Guedes”, diz.
Para ele, a música daquele ano trazia o tom de política e luta - que percorreu e driblou todas as décadas de censura, apesar da ditadura. Entretanto, havia mais: a esperança também estava presente. “O disco do Ivan Lins era de luta e de esperança”, especificou. De fato, o cantor, compositor e pianista trouxe no álbum “A Noite” músicas como “Desesperar Jamais”, que entoava: “No balanço de perdas e danos/ Já tivemos muitos desenganos/ Já tivemos muito que chorar/ Mas agora acho que chegou a hora/ De fazer valer o dito popular/ Desesperar, jamais”.
“Os discos de 1979 são de transição, estávamos saindo da escuridão. Tem Gonzaguinha, tem a força da poética da Kátia de França. Tem o que estava diretamente ligado à anistia, como o relançamento de um LP com regravações do Geraldo Vandré, inclusive com ‘Caminhando’, que foi uma música que tocou muito na rádio naquela época. Também tocou muito ‘O Bêbado e o Equilibrista’, na voz da Elis Regina”, cita Célio Albuquerque.
As mulheres compositoras
Um processo que se tornou evidente durante aquele ano também foi a maior participação das mulheres na composição. “A Rita Lee e a Joyce Moreno, antes disso, já estavam construindo uma história da mulher compositora na música popular brasileira. Mas, além delas, havia Luli e Lucinha, que já estavam no mercado e, com um disco em formato independente, ganharam visibilidade, porque elas vão para a estrada e começam a aparecer. Tinha ainda a Angela Ro Ro”, ressalta o organizador do livro.
Um dos exemplos dessa situação foi a trilha sonora da série “Malu Mulher”, exibida pela TV Globo. Na história, a protagonista era Malu, uma mulher que se separou após um casamento violento. Com sua filha adolescente, ela sai de casa e precisa encontrar um trabalho para manter seu novo lar. A personagem, vivida por Regina Duarte, é contratada em um instituto de pesquisa e recomeça sua vida amorosa. Em meio à ditadura militar, a figura de Malu contrariava muitos dos ideais conservadores acerca do papel de uma mulher.
“Em 1979, há mais espaço para falar abertamente, mas a censura foi em cima de ‘Malu Mulher’ e chegou a censurar. Teve um episódio inteiro que não foi ao ar. Apesar disso, já tem um espaço maior para discutir assuntos mais sérios. É a história de mulher que escapa de um relacionamento violento, vai para o mercado de trabalho, cria uma filha adolescente, volta a se relacionar com outro homem”, explica Beto Feitosa, produtor cultural, organizador do Festival Ziriguidum e escritor do texto sobre “Malu Mulher (Trilha Sonora)”.
Entre as músicas na série, todas eram de cantoras femininas. Há Simone, Elis Regina, Rita Lee, Maria Bethânia, Fafá de Belém, Joanna, Gal Costa, Maysa, Marina Lima, Zezé Motta e Quarteto em Cy. Na composição, as artistas são Angela Ro Ro e Joyce Moreno. “Foi um painel de vozes femininas da época. Já tinha cantoras consagradas e outras que ainda estavam alcançando visibilidade”, analisa o autor. “Mais que as letras, as músicas também mostravam a posição política dessas mulheres que estavam se firmando como artistas e compositoras. E isso conversa muito com a série, porque as pessoas estavam vendo que a mulher estava tomando conta da própria vida na televisão”, explica.
Beto Feitosa, que tinha somente três anos em 1979, conheceu muitas das cantoras e compositoras que admira hoje nesta época. “Eu tinha uma vitrolinha quando era criança, com um disco de historinhas, que eu não dava a mínima atenção. Ganhei o disco da Rita Lee em 1979 e aquilo mudou minha vida. Na trilha sonora, estão algumas das minhas cantoras favoritas, como Rita Lee, Gal Costa, Fafá de Belém, Elis Regina… Eu as ouvi a vida inteira”, recorda.
Cenário independente
Em meio à ebulição da produção artística daquele ano, muitos artistas seguiram na carreira independente como maneira de lançar suas próprias músicas. Um dos casos de maior destaque foi o grupo Boca Livre, composto por Fernando Gama, Cláudio Nucci, Lourenço Baeta, Zé Renato e David Tygel, e que posteriormente firmou parcerias com nomes como Edu Lobo e Milton Nascimento.
“Esse movimento ocorre depois que o Antonio Adolfo lançou o ‘Feito em Casa’, disco independente feito às próprias custas, em que a capa são carimbos (tanto é que a primeira tiragem não tem capas iguais), e teve uma experiência extremamente bem sucedida. Ele fez um disco bom, com boa sonoridade e conseguiu distribuir bem o disco enquanto circulava pelo Brasil”, explica Célio Albuquerque.
O jornalista também comenta que Antonio Adolfo era uma pessoa solidária e ajudou outras pessoas a seguirem independentes. “Por exemplo, nós temos Jaime Alem e Nair Cândia com a elaboração de 'Amanheceremos'. Eles juntaram as economias e fizeram esse disco com tanto primor… Era um LP que vinha com brinde e faixas extras. Também tem Francisco Mário, Mar Revolto, Luli e Lucinha”, exemplifica.
1979 no Ceará
O Ceará não fica para trás nos eventos marcantes que se sucederam em 1979. Neste ano, Ednardo e Augusto Pontes organizaram a Massafeira Livre, uma feira que reunia várias expressões artísticas do Estado no Theatro José de Alencar. “Foi um grande momento coletivo das artes do Ceará, juntando várias linguagens, além de artistas jovens e veteranos durante quatro dias em março de 1979”, recorda a cantora Mona Gadelha, que participou do evento e escreveu um artigo sobre o “Massafeira Livre” para o livro.
Mais de 400 artistas se encontraram no TJA e compartilharam experiências. “Acho que extrapolou qualquer expectativa de seus criadores e produtores, porque, desse festival, houve um momento histórico de encontro e de demonstração de um cenário em plena ebulição das artes naquele momento, particularmente dos artistas cearenses”, afirma ela.
O evento ainda foi importante para os artistas pós-pessoal do Ceará, porque revelou as novas promessas das artes ao público. “Do ponto de vista histórico, a Massafeira representa uma geração que vem após o ‘Pessoal do Ceará’ e que se junta ao próprio ‘Pessoal do Ceará’, constituindo uma identidade artística e musical do nosso Estado”, diz Mona Gadelha. Nos palcos, grandes artistas estavam presentes, como Patativa do Assaré, Fausto Nilo, Fagner e Belchior.
E, depois disso, muitos dos cantores foram chamados para compor um álbum com a então gravadora CBS (agora Sony Music). Um grupo foi ao Rio de Janeiro para passar algumas semanas entre o hotel e as gravações do disco. Além da própria Mona, havia Angela Linhares, Francisco Casaverde, Ana Fonteles e Lúcio Ricardo.
“A memória que eu tenho é de como isso foi um gesto generoso, também inteligente e inovador, de ter juntado as novas gerações. Isso é uma lição que a gente precisa aprender sempre, que é necessário que a experiência de pessoas que já estão na estrada possa se juntar com as pessoas novas”, reflete Mona Gadelha.
Sobre o livro
“1979 - O Ano que Ressignificou a MPB” tem previsão de publicação para o segundo semestre. O trabalho, que reúne quase 100 análises de discos, foi organizado por Célio Albuquerque, que já havia sido responsável por “1973 - O ano que reinventou a MPB”. A pré-venda está disponível no site do Catarse.
Entre os colaboradores da obra, estão os cearenses Mimi Rocha, com “A Quem Interessa Possa”, do grupo D’Alma; Dalwton Moura, com o disco “Ednardo”; Nelson Augusto, com “Bendengó”; Mona Gadelha, com “Massafeira Livre”; além do editor do Vida&Arte, Marcos Sampaio, com “Equatorial”, de Teti.
A produção será publicada pela Garota FM, responsável por uma série de ações que envolve a música brasileira. “Em ‘1979’, a gente procurou não ficar restrito a autores do Rio de Janeiro e de São Paulo. Temos autores do Ceará, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, da Paraíba… A gente pensou em um livro multicultural, no mesmo formato que foi o ‘1973’”, explana Célio.
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