Dossiê Legião Urbana: A história por trás do álbum "Dois" (Parte 2)
Considerado pela Rolling Stone o 21º maior disco da história da música brasileira, "Dois" consolidou a estrada da Legião Urbana apresentando sucessos como "Índios", "Eduardo e Mônica" e "Tempo perdido"
10:00 | Jan. 08, 2022
Confira aqui a primeira parte do "Dossiê Legião Urbana: A história por trás do álbum 'Dois'"
Mesmo com a crise econômica, foi possível realizar, de forma geral, a estratégia prevista por Renato Russo para o segundo disco da Legião Urbana. Logo na abertura, como aponta Arthur Dapieve, autor do livro “BRock - O Rock Brasileiro dos Anos 80”, é possível notar que o álbum começa “exatamente onde ‘Legião Urbana’ termina”. “O dial de um rádio era girado, passava por ‘Será’ entre chiados e ia ‘pegar’ ‘Daniel Na Cova dos Leões’, cujo parente mais próximo no disco anterior era justo a última faixa, ‘Por Enquanto’”. Os versos iniciais da música, para o jornalista, deixavam “clara a intenção de privilegiar a esfera pessoal em detrimento da pública”.
Grande parte das músicas do “Dois” foi feita “do zero” nos estúdios, mas algumas canções foram aproveitadas do Aborto Elétrico - primeira banda de Renato Russo, que deu origem ao Capital Inicial e à própria Legião após desentendimentos entre Fê Lemos e Russo - e do “Trovador Solitário” - período solo do vocalista antes de formar a Legião Urbana.
“Fábrica” e “Metrópole”, por exemplo, tiveram letra e harmonia alteradas. “Eduardo e Mônica” e “Música Urbana 2” são da fase Trovador Solitário. “Daniel Na Cova Dos Leões” começou a ser feita durante as gravações do primeiro LP. Quanto a “Tempo Perdido”, há algumas curiosidades que rondam sua composição.
Os primeiros versos de “Tempo Perdido” foram aproveitados de uma faixa intitulada “1977”. “Todos os dias quando acordo de manhã/ Não tenho mais o tempo do dia que passou/ Mas tenho muito tempo para acabar com essa indecisão/ De ter a sinceridade em perigo”. Além disso, Renato Russo chegou a pedir ajuda para Marcelo Rubens Paiva, escritor do livro “Feliz Ano Velho”, para escrever a letra da canção, mas ele negou. Russo, então, completou os versos sozinho.
A antepenúltima faixa do disco, “Andrea Doria”, tem o mesmo nome de um navio transatlântico que colidiu com uma embarcação sueca em 1956 após forte nevoeiro em Nova York. A maioria dos passageiros foi salva, mas 47 pessoas faleceram. Como o vocalista afirmou em entrevista a Leoni (ex-Kid Abelha), a música fala sobre a juventude, “ter sonhos, fazer planos e esbarrar neste mundo de hipocrisia, de mentira, do capitalismo, de consumismo” em que as pessoas ficam sem saber o que fazer. A música surgiu após Bonfá tocar dois acordes na guitarra de Dado.
Um dos hits do álbum, “Índios” inicialmente só tinha uma base, ou seja, ainda não contava com melodia nem letra. “A Legião compunha muito desta forma. Primeiro fazia uma base e, a partir dali, Renato ia pensar no que ia dizer”, afirmou o produtor Mayrton Bahia à Vice Brasil. “Era apenas uma linha melódica harmônica meio bachiana que o Renato tinha criado no teclado. A questão é que o instrumental de “Índios” tinha sido gravado e, quando o disco estava para ser fechado, o Renato falou: ‘Terminei a letra dessa música aqui, vamos lá?’”, revela Dado em sua biografia.
Entretanto, quando Renato começou a cantar, as estrofes não encaixavam totalmente na base e ainda ultrapassavam o tempo da música. A solução? Mayrton Bahia arranjou uma alternativa: ele propôs a Renato ouvir novamente as primeiras tomadas - “mais espontâneas” - e “fazer um violão acompanhando a base”. Curiosamente, o instrumento foi gravado no mesmo canal da voz, pois na época eram disponíveis apenas 16 canais.
Assim, a sensação no final da música “de que os instrumentos estão desaparecendo e se desintegrando” ocorreu porque “faltou música para o tamanho da letra”: “Acaba a voz e ele vem tocando o violão, embaixo os instrumentos vão desaparecendo, você vai perceber que a bateria faz uma virada toda fora do lugar e de repente ele faz um sinal com violão e parece um fim maravilhoso, parece que é tudo pensado e planejado. Muita gente falou: ‘Que incrível esse final que vai se desconstruindo’. Foi uma solução para poder aproveitar a base. Ficou legal, ficou maravilhoso, nós fazíamos muito isso. Para aproveitar, a gente ia criando em cima do que ia acontecendo”.
Ainda que tenha sido uma das faixas de maior sucesso do “Dois”, “Índios” poucas vezes foi tocada ao vivo pela banda - isso até enfurecia, às vezes, a plateia, que desejava ouvir a canção nos shows. Renato Russo esquecia constantemente a letra, como ele mesmo chegou a admitir em uma apresentação. “Essa eu nunca sei a letra. Nunca!”, disse o cantor. Em seguida, pediu ajuda do público para seguir cantando a música.
Outra música que teve toque especial de Mayrton Bahia foi “Acrilic On Canvas”, considerada por ele “dificílima de cantar porque não tem onde gravar”. Durante as gravações, ele capturava a voz de Russo em um canal e outra parte letra em outro canal. Assim, quando ele finalizava em um ponto logo entrava em outro. “Tem frases que vão se ligando, emendando e você não sabe onde ele respira. Quando vejo uma banda cover cantando essa canção, fico esperando para ver onde o cara vai respirar”, relatou à Vice Brasil.
Para Dado Villa-Lobos, a confirmação do grande alcance que a banda havia conseguido ocorreu quando, em 1987, foi visitar Carlos Savalla em uma chácara em uma área “quase rural” da Zona Oeste do Rio. Lá, viu um “peão” que carregava uma enxada e estava escutando “Índios” em um pequeno rádio de pilha sintonizado em uma estação AM. “Nesse momento, eu percebi que a Legião tinha finalmente deslanchado, e que agora não havia mais volta”, finalizou.
A rotina no estúdio
“Dois” marca também o amadurecimento musical de toda a banda. Com meses no estúdio, os integrantes puderam fazer experimentações e contaram com recursos tecnológicos avançados. Mesmo com essas possibilidades, vale dizer que não foi fácil produzir o segundo disco.
Mayrton Bahia, produtor do “Dois”, comenta que, apesar de já ter "grande prática e experiência” em trabalho em estúdio, teve que “jogar tudo fora e desenvolver uma maneira própria de trabalhar” com a Legião Urbana. “Talvez eles não soubessem exatamente o que queriam, mas sabiam o que não queriam. Muitas vezes eu vinha com uma sugestão, mas tive que desenvolver uma metodologia para conseguir traduzir exatamente o que eles sentiam, pensavam, a maneira que eles estavam querendo se expressar”, disse à revista Vice Brasil.
As etapas de produção aconteciam todas juntas: as ideias chegavam soltas no estúdio e os elementos poderiam ser qualquer parte de uma canção, como em um “grande rascunho”. Com o tempo, eles poliam e a música ganhava forma. “Eu brincava que a Legião era como se fosse a pintura de um quadro: você faz esboço, joga tinta, pinta por cima e quando olha de muito perto nota imperfeições, mas quando olha de longe vê as camadas”.
Como afirma a jornalista Chris Fuscaldo em sua “Discobiografia Legionária”: “Nada foi muito fácil durante a produção do ‘Dois’. A mixagem não podia ter sido diferente. Gravado em dezesseis canais, o álbum soa cru, mas é repleto de texturas sonoras. Em cada canal havia milhares de coisas, diversos instrumentos, muito a ouvir e estudar. Se um artista levava cerca de seis horas para mixar cada música, a Legião gastava de doze horas para cima”.
Ao seu lado, Mayrton tinha Carlos Savalla como assistente de produção. Bonfá e Dado, em entrevista para a Vice Brasil, comentam que foi uma relação tensa no estúdio, com dificuldades para “timbrar os instrumentos” e expressar o som que gostariam de fazer. “O técnico de som não estava muito acostumado com este tipo de som, a gravadora não estava, o País não estava, né? O que se tirava de uma bateria naquele momento era um som muito chinfrim e a gente brigava por um som mais pesado. A gravadora tinha medo disso, de assustar as famílias conservadoras, sei lá… Ao mesmo tempo queria um resultado de rock. Claro que a gente também não sabia, mas ouvíamos um som que a gente sabia que ia fazer uma revolução sonora”, relatou Bonfá.
Nesse sentido, Mayrton foi importante para “gerenciar crises” e proporcionar a forma de som mais desejada pela banda, dando ideias e auxiliando na finalização das canções compostas pelo grupo. Com os grandes resultados alcançados, a Legião Urbana passou a ter um impactante poder de barganha com a gravadora. “Nós éramos realmente uma grande promessa e cumprimos essa promessa no segundo disco. E depois, promessa cumprida, mandávamos nesses caras. Se eles não cumprissem, íamos lá e pichávamos as paredes e pronto”, afirmou Dado Villa-Lobos à Vice Brasil.
Um contratempo, porém, ocorreu com a capa do disco. O cenário econômico conturbado do Brasil e até o sucesso do “Rádio Pirata Ao Vivo”, do RPM, afetaram o projeto gráfico do álbum. Simples, a capa do “Dois” traz contribuição da artista Fernanda Pacheco. Envolvido em cor de bronze, o trabalho apresenta apenas o nome “Legião Urbana” no centro e o título “Dois” em relevo.
A ideia da banda era que fosse impresso em “papel couché, uma gramatura boa, cor especial e certo tratamento estético”. O problema é que, quando o projeto estava indo para a gráfica, os integrantes foram surpreendidos pelo “desabastecimento que acompanhou o Plano Cruzado”. Dado comenta:
“Não havia papel no mercado para a capa do nosso disco, uma vez que a CBS tinha esgotado esse produto para imprimir o 'Rádio Pirata Ao Vivo'. Foi desagradável porque, além de ter atrasado o lançamento do 'Dois', a qualidade do material utilizado na capa foi afetada, com consequências para o projeto gráfico elaborado”.
“O sucesso viria de qualquer jeito”
No livro “Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos anos 80”, o jornalista Ricardo Alexandre aponta que o sucesso de bandas como o RPM e a Legião Urbana poderia ser explicado pelo “processo de criação radical intacto” acrescido “de uma embalagem pop eficiente”. O argumento surge na obra em meio aos detalhes sobre o planejamento realizado por Renato Russo para que “Dois” se tornasse o sucesso que acabou se tornando.
Para a jornalista Chris Fuscaldo, autora do livro “Discobiografia Legionária” e do texto de apresentação da edição especial de 2010 do CD “Dois”, atrelar esse sucesso do álbum a uma definição é “muito difícil”, porque, para ela, é como se “estivesse escrito” que a banda “iria acontecer” inevitavelmente. Apesar da preocupação de Renato com a “síndrome do segundo disco” ter intensificado seu anseio de organização, Fuscaldo aponta que planejar já era um hábito que o acompanhava, como quando criou, aos 15 anos, a 42nd Street Band, banda imaginária de rock.
“Eu tendo a achar que o sucesso da Legião Urbana era algo que não tinha mais para onde fugir desde que o Renato começou a planejar. Ia acontecer de qualquer maneira”, afirma. Em “Dois”, Chris Fuscaldo percebe a mudança de postura entre os discos e aponta para um trabalho mais “misturado”, trazendo composições que incluem críticas ao sistema, sexualidade, relacionamentos e também romantismo. Nesse aspecto, entende como uma obra “aberta a diversas interpretações”, em que prefere não apontar um lado que prevalece mais. Para a autora, a maneira como cada ouvinte recebe o álbum também é particular.
Em seu livro, a jornalista explora os processos de gravação e de convívio nos estúdios durante o desenvolvimento dos álbuns da banda. Na obra, ela comenta a importância do baixista Renato Rocha - também chamado de Negrete - no “Dois”, disco em que “teve a oportunidade de apresentar mais o seu potencial”.
Para a autora, sua participação no primeiro disco foi menos notória, mas o segundo foi a chance de ter mais destaque. Ele contribuiu para a composição de faixas como “Daniel na Cova dos Leões”, “Quase Sem Querer”, “Andrea Doria” e “Acrilic On Canvas”. Na visão de Fuscaldo, Rocha foi um grande “diferencial” em qualidade sonora para a banda.
Lançado em 1986, “Dois” teve que “competir” com outros lançamentos de grande impacto na música nacional. Álbuns como “Rádio Pirata Ao Vivo”, do RPM, “Cabeça Dinossauro”, do Titãs, e “Selvagem?”, dos Paralamas do Sucesso, tiveram grande destaque naquele ano. Em meio à onda de rock que estava muito forte no Brasil na época, Chris acredita que os álbuns conseguiram ajudar a estabelecer o gênero musical no período.
Na análise de Chris Fuscaldo, o “Dois” teve grande importância para toda a carreira da Legião Urbana, um trabalho que veio após dificuldades de inspiração e com a mixagem das faixas. Aliás, foi importante não só para o grupo, mas também para a música brasileira, ecoando até hoje: “É um disco que fica marcado na história. Ele define esse momento de um rock que está se estabelecendo, aderindo de certa forma também ao MPB, com muito violão. É um álbum que tem muito a ver com 1986 e que ficou para sempre. Nós nos lembramos dele hoje como se fosse um disco feito mês passado”.
Um passo adiante
Na visão de Julliany Mucury, doutora em literatura brasileira e autora do livro “Renato, o Russo”, os dois primeiros álbuns da banda apresentam uma linha de raciocínio “muito completa”, alcançando os pensamentos de Renato em diversas frentes. Assim, é possível ver similaridades em algumas canções, como “Soldados”, do “Legião Urbana”, e “Fábrica”, do “Dois”. Para a pesquisadora, apesar de não terem sido os “hits” de seus discos, já apresentavam uma “mensagem de conteúdo político muito forte” que seria a marca do grupo.
Um outro aspecto que se destaca no “Dois” para a autora de “Renato, O Russo” é a complexidade do álbum, trazendo novas experimentações dos integrantes da banda e atravessando o período conturbado do Plano Cruzado. Além disso, apresenta outra postura dos membros: Renato, mais seguro, adota “algo mais seu” e, sem “a linguagem de protesto do punk rock” do primeiro disco, “dá um passo à frente” nos temas de suas canções:
“Em ‘Acrilic on Canvas’, ele faz um grande jogo metafórico sobre o amor e os elementos de um quadro para falar sobre as questões do não realizável, do desejado, do sonho, que acompanharão o Renato até sua morte”. A escritora, que em seu livro analisa letras de Russo, aponta três canções que considera “as principais” do “Dois”: “Índios”, “Fábrica” e “Acrilic On Canvas”.
“Eu acredito que essas canções não podem passar despercebidas, porque elas cravam para o grande fã e grande ouvinte da Legião Urbana sobre a que veio Renato Manfredini Júnior na persona de Renato Russo. Há muito do sarcasmo, da percepção social, da vontade de criar letras não óbvias, de colocar um conteúdo subjacente para fazer o público pensar e se mexer. O Renato queria muito que essa mensagem entrasse no coração das pessoas, e isso, em 1986, torna-se uma febre”, destaca.
Nesse sentido, Julliany Mucury aponta como um dos motivos para o grande sucesso dessa obra o fato da banda “conversar com uma geração que está profundamente alterada” devido às transformações que o País enfrentava. Não à toa, “Dois” pode ser considerado “um divisor de águas” na trajetória da Legião Urbana.
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