Dossiê Legião Urbana: A história por trás do álbum "Dois" (Parte 1)
Considerado pela Rolling Stone o 21º maior disco da história da música brasileira, "Dois" elevou o patamar da Legião Urbana e consolidou o discurso - sonoro e verbal - que seria adotado pelo grupo
10:00 | Jan. 08, 2022
O ano de 1986 foi histórico para a música brasileira e, principalmente, para o rock nacional. Naquele ano, foram lançados discos de grande impacto para o gênero musical no País, tendo como alguns exemplos “Cabeça Dinossauro” (Titãs), “Selvagem?” (Os Paralamas do Sucesso), “Vivendo e Não Aprendendo” (Ira!) e “Rádio Pirata Ao Vivo” (RPM). Em meio a um cenário de incertezas e dúvidas diante da crise econômica que o Brasil enfrentava, o rock parecia ter encontrado o seu lugar de destaque em terras nacionais.
Esse também foi o ano de lançamento do “Dois”, da Legião Urbana. No encarte, o aviso de que era necessário ouvir o álbum “no volume máximo” dava uma ideia do poder da obra que carrega consigo sucessos como “Tempo Perdido”, “Índios”, “Quase Sem Querer” e “Eduardo e Mônica” - cujo filme em breve estreará nos cinemas. Com mais de 1,5 milhões de cópias vendidas e considerado pela revista Rolling Stone o 21º maior disco da história da música brasileira, “Dois” elevou o patamar da Legião Urbana e consolidou o discurso - sonoro e verbal - que seria adotado pelo grupo dali em diante.
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Para começar a contar essa história, antes, precisamos voltar um pouco no tempo: em 1985, chegava às prateleiras das lojas de música o “Legião Urbana”, disco de estreia da banda brasiliense formada por Renato Russo, Renato Rocha, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. A estimativa inicial da gravadora, EMI-Odeon, era alcançar cinco mil cópias em vendagem. Com sucessos como “Será”, “Geração Coca-Cola” e “Ainda É Cedo”, o LP que carregava forte influência punk e era marcado pelo alto teor de protesto ultrapassou 80 mil discos vendidos à época.
A Revista Bizz, referência no segmento musical, elegeu a Legião Urbana e o Renato Russo como a melhor banda e o melhor cantor, respectivamente, daquele ano. O trabalho pôs o grupo em destaque nas rádios e deu grande visibilidade ao conjunto de Brasília. Com isso, os integrantes acabaram se mudando para o Rio de Janeiro em 1985 e, pouco após o lançamento do primeiro, já planejaram o repertório para o segundo álbum.
A pressão do novo álbum
Naquele período, o rock nacional encontrava terreno fértil para seu crescimento, com adesão cada vez maior do público brasileiro ao gênero. No caso da Legião, o sucesso do primeiro disco estava sendo proporcionalmente relacionado à pressão enfrentada para a construção do próximo trabalho.
“Aquele momento era muito intenso, muita coisa acontecendo, trabalhando o primeiro disco e fazendo show. Estávamos começando e é aquela história de já ter composições na manga, estar executando ao vivo e, de repente, tá na hora de fazer um segundo disco. Lembro de certa pressão externa pelo resultado do primeiro disco”, comentou o baterista Marcelo Bonfá em entrevista para a Vice Brasil.
E acrescentou: “As pessoas costumam dizer que o segundo disco é um marco, e senti na pele. É um marco de uma banda, principalmente quando é uma banda de garotada”.
A “Síndrome do Segundo Disco”
Esse era o pensamento principalmente de Renato Russo, cuja “síndrome do segundo disco” passou a servir como um guia dos passos que seriam seguidos. “Ele argumentava que não podíamos fraquejar e que o novo álbum seria determinante na nossa carreira, a prova de que havíamos chegado para ficar”, comenta o guitarrista Dado Villa-Lobos em sua biografia “Memórias de Um Legionário”.
Para isso, Russo já tinha tudo - ou quase tudo - planejado: em um caderno, escreveu como seria o disco, faixa a faixa, e “como deveria ser gravado”: “O primeiro foi bem aceito e teve boa vendagem e execução em rádios, então, esse tinha que superar”. Esse comentário de Dado está no livro “Discobiografia Legionária”, da jornalista Chris Fuscaldo.
A superação do primeiro trabalho começaria logo na extensão da obra: inicialmente, a ideia era que “Dois” fosse um disco duplo intitulado “Mitologia e Intuição”, que traria mais músicas e versões de canções como “O grande inverno na Rússia”, “A canção do senhor da guerra”, “Tédio”, “Conexão amazônica” e “Faroeste caboclo”. Entretanto, um fator foi crucial para que o projeto não fosse adiante: a crise econômica no Brasil.
Em fevereiro de 1986, foi implementado durante o governo de José Sarney o “Plano Cruzado”, que buscava estabilizar a economia e controlar a inflação, e congelou preços e salários. Apesar de ter tido um “sucesso” inicial por ter aumentado o poder compra dos consumidores, o plano causou desabastecimento e volta intensa da inflação. Assim, acabaria sendo bastante caro realizar o álbum duplo.
Uma canção que chegou a ser gravada e mixada foi uma versão de “Juízo Final”, samba de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares. Com levada “pós-punk na segunda parte”, seria, a propósito, a música de encerramento do disco. Entretanto, precisou ser “sacrificada” porque sua inclusão afetaria a qualidade do vinil - seria necessário tornar o sulco do vinil mais fino para caber a duração da música, o que reduziria a qualidade do som.
Mudança de sonoridade
O primeiro disco é marcado por uma sonoridade mais forte que resgata bastante as influências do punk rock que Renato trazia consigo desde a época do “Aborto Elétrico” - sua primeira banda. Além disso, se destacam canções de protesto e críticas ao sistema, como “Geração Coca-Cola”. Em “Dois”, porém, Renato Russo pensou em outra possibilidade: assumir tons mais intimistas e acústicos, focando mais em relacionamentos emocionais e afetivos.
“Ao passo que estamos nos distanciando do referencial externo – governo, política, Estado, poluição –, neste segundo a gente está superinteriorizando. Não temos mais músicas como ‘Soldados’ e ‘O Reggae’, porque a gente já falou daquilo ali. Não vou ficar a vida inteira falando da escola. Agora estamos falando do relacionamento emocional e afetivo das pessoas”, declarou o músico.
As mudanças sonoras buscadas por Renato atingiriam também os outros integrantes. No caso de Dado, por exemplo, Renato deu a ele uma fita cassete com músicas de Paul McCartney, Buffalo Springfield, Cat Stevens e George Harrison. Com esse gesto, apresentou a sua visão do que poderia ser o “Dois”: uma pegada influenciada pelo folk e com traços mais voltados para o semiacústico.
Renato desejava se expressar de maneira diferente no novo álbum, por isso ele e a banda acharam melhor “fugir da fórmula” do primeiro trabalho. “Achamos que seria mais bacana experimentar coisas como blues e outros tipos de músicas como “Acrilic On Canvas” ou “Andrea Doria”, que foi o Bonfá que fez”, disse para a Revista Roll em 1986. Renato Rocha também teve contribuição crucial no amadurecimento sonoro da banda com a linha de baixo em “Daniel na Cova dos Leões” e chegou a tocar teclado em “Acrilic On Canvas”.
A “catequese” - como afirma Dado - se estendeu aos executivos da EMI-Odeon, e Renato buscou convencer até o presidente da gravadora, Beto Boaventura, sobre suas ideias para o disco. O vocalista até escreveu um discurso em que aponta os motivos para cada faixa estar no “Dois”, mencionando a ordem em que deveriam aparecer. Não parou por aí: Russo tinha noção das músicas que poderiam se tornar “hits” - previsões que se tornaram realidade. Leia um trecho:
“O Renato conseguia transmitir muita segurança na exposição de suas ideias e tinha uma vibração que nos levava a acreditar que a razão estava com ele. Comportava-se como uma liderança que deveria ser seguida em toda e qualquer ocasião e isso, de fato, acontecia. As pessoas costumavam se dobrar a ele e a se entusiasmar com a sua personalidade. Nesse sentido, podemos dizer que o Renato tinha, sim, um lado messiânico, que se mostrava muitas vezes eficaz”, comentou Dado em seu livro.
Confira aqui a segunda parte do "Dossiê Legião Urbana: A história por trás do álbum 'Dois'"
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