Fanfics: fãs brasileiros criam editoras independentes para publicar livros
Desde o ano passado, jovens brasileiros transformam fanfictions - ficção escrita por fãs - em livros e ganham destaque no mercado literário independente; veja alguns títulosImagine que Jimin e Jungkook, ambos membros da banda sul-coreana BTS, não são artistas mundialmente famosos. Eles fazem parte, na verdade, de um universo fictício - em que nada tem a ver com o grupo de k-pop. O primeiro é um híbrido de sapo, enquanto o segundo é ativista em uma organização não governamental que luta pelo fim da comercialização desses seres.
Agora, não pense mais neles com os nomes da vida real: coloque Vítor e Gustavo, respectivamente. Retire desses personagens qualquer característica que possibilite ligação direta com a realidade. Com isso, uma história que começou como uma fanfiction - ficção feita por e para fãs - se tornou um livro de comédia dramática futurista.
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O enredo que tem como inspiração inicial dois dos mais famosos cantores da Coreia do Sul é de “Croack”, escrito por Mel Ikus e lançado recentemente pela Editora Violeta. Ao lado desta obra, dezenas de títulos estão sendo publicados com regularidade: “O Beijo de Libra”, de Ruth Oliveira, “O Castelo de Vidro”, de R.M Shiniz, e “Dangerous”, de Débora Matos, são apenas alguns outros que podem ser citados da mesma editora independente.
Esse é um fenômeno que já existia no exterior - duas narrativas são populares e se tornaram bestsellers: “50 Tons de Cinza”, de E. L. James, e “After”, de Anna Todd. Mas, em território brasileiro, esse movimento começou com maior intensidade depois do sucesso de “Ele É Como Rheya”, de Nicoly Pacheco, apelidada de “Coly” na internet. E ainda há uma diferença: no Brasil, as empresas são especializadas neste tipo de adaptação.
“A experiência de publicar a própria obra mostrou para a Coly que era possível investir na publicação de livros originados de fanfictions, coisa que, até então, parecia um sonho impossível. Foi assim que ela começou a estudar sobre a possibilidade de abrir portas para outros autores de fanfics”, explicam Ruth Oliveira, responsável pelo marketing e também autora, e Nicoly, fundadora da Violeta.
“A primeira publicação recebeu mais apoio que o esperado, o que, além de uma surpresa muito positiva, também serviu como um ‘termômetro’ para avaliar a viabilidade de um projeto como esse no Brasil. Percebemos que essas histórias incríveis conquistam os leitores para além do mundo virtual, e tê-las no formato físico é um sonho que os autores não sonham sozinhos. Muitos leitores também sonham com isso”, afirmam.
Distante do mercado editorial tradicional, a editora tem o objetivo de levar histórias da biblioteca virtual para o mundo físico. “É isso que tentamos fazer todos os dias: levar essas histórias incríveis para públicos cada vez maiores. Ainda ocupamos um espaço muito pequeno no mercado editorial, mas vemos, a cada dia que passa, novas pessoas conhecendo e se interessando pelos livros que publicamos, muitas das quais nunca tiveram o hábito de ler fanfics”, comentam.
A Violeta, porém, não é a única neste nicho. A Euphoria, que surgiu em meados de 2020 e é uma das precursoras, também já adaptou várias obras. A ideia para a empresa iniciou de uma parceria entre N. Belikov e M.F de Melo (nomes com os quais assinam), ambas escritoras de fanfics. Esta última, porém, saiu do projeto e a primeira continuou sozinha ao avaliar que isso podia ser um mercado economicamente viável no Brasil.
Agora, já disponibiliza para a compra títulos como “Quente Como O Inferno”, de Marcela Tavalus; “Adicto”, de Gabriela Paraizo; “Polêmico”, de Anya; e “Condenados”, de Briell Salvador. A editora, atualmente, é focada em publicar livros das fanfictions LGBTQIA+ mais populares entre os fãs.
De fanfics para livros
Há uma questão de direitos autorais ou de personalidade que envolve todo o processo de adaptação: não é possível comercializar obras que tenham o nome dos famosos. Qualquer vínculo direto precisa ser retirado para que não haja problemas. “O processo de adaptação ocorre de forma tranquila com o autor, damos total liberdade para serem feitas alterações e acompanhamos a mudança da fanfic para o original. Nós mudamos principalmente o nome dos personagens na fanfic para os nomes originais escolhidos pelo autor e fazemos a preparação do material”, explica Vitória Almeida, responsável pelo marketing da Euphoria.
Ela pontua que, no início, havia a busca por livros que dessem retorno direto. “Como uma empresa pequena começando agora nesse meio, precisávamos de histórias que pudessem nos dar um retorno imediato, para investir e melhorar o nosso serviço, é claro. Agora que estamos começando a levar nossos livros a bancas de jornais e eventos culturais, estamos procurando também histórias que chamem atenção do público fora de um único nicho de pessoas”, comenta.
Na Violeta, esse trabalho é similar: “O processo de adaptação é iniciado com as mudanças necessárias para desvincular a história dos artistas e com as sugestões eventualmente apontadas após a leitura crítica. Alguns autores optam também por realizar outras mudanças que julgam necessárias. Em seguida, o texto adaptado da história passa por um processo de preparação e revisão com uma equipe de profissionais”, apontam Ruth Oliveira e Nicoly Pacheco. No caso da editora, a equipe recebe dezenas de recomendações por meio de seus canais de comunicação que passarão por uma leitura crítica. “O resultado da avaliação é o fator crucial para a escolha”, indicam.
Já Lorena de Paula Vieira, dona da Mikrokosmos, especializada em literatura LGBTQIA+, ainda cita outra questão: há determinadas partes que são alteradas porque, no momento de levar de uma plataforma para outra, alguns pontos não cabem. “Tem muita coisa que, ao escrever uma fanfic, a gente deixa ‘passar’ e releva porque é uma fanfic, mas como livro não funciona, então é preciso que o autor modifique, reescreva certas partes e reavalie o que foi escrito até chegarmos em um resultado que satisfaça tanto o autor quanto a editora”.
Grupos pop e a leitura
As três editoras aqui citadas - Mikrokosmos, Euphoria e Violeta - se conectam entre si não apenas no nicho de mercado, mas também na inspiração inicial. Todas as fundadoras são fãs do grupo de k-pop BTS. De maneira indireta, o septeto que atua principalmente na música influencia a produção literária de jovens escritores.
“Acreditamos que a influência do BTS sobre o público e até mesmo sobre pessoas que não são fãs árduas pode acontecer de várias formas. Principalmente para quem acompanha, é claro, eles influenciam muito mais do que só no âmbito musical. Todas as falas e ensinamentos que eles passam para os fãs, sendo principalmente através da música, incentivam muitas pessoas a seguirem sonhos e iniciarem projetos, como escrever”, avalia Vitória Almeida. Para ela, esse movimento faz com que os consumidores de literatura aumentem.
Segundo Ruth Oliveira e Nicoly Pacheco, a relação entre a escrita e a banda sul-coreana permite a combinação de duas paixões. “O BTS é um grupo que inspira todo o fandom (grupo de fãs) de diversas maneiras. No caso de escritores, acreditamos que a conexão que nós, fãs, temos com os artistas que compõem o grupo nos inspira a fazer o que amamos: escrever. É uma combinação de duas grandes paixões, o BTS e a criação de histórias, que nos possibilita explorar o nosso ‘eu escritor’”.
Exemplo do hábito de leitura como consequência da afeição por famosos é o de Lorena de Paula Vieira, que começou a ler fanfics quando ainda tinha 12 anos. “Não sabia o que eu estava fazendo, mas achava legal ver histórias diferentes com personagens que eu já conhecia de séries ou livros, personagens que eu tanto gostava fora de suas realidades originais”, recorda.
Ela lembra também de outro ponto positivo para o leitor: “você não precisa pagar para ler fanfics, diferente de livros. Você pode ler o quanto quiser, basta procurar o que te agrada. Então eu praticamente cresci lendo fanfics. Elas me incentivaram a leitura desde muito cedo, além de instigar em mim uma vontade enorme de escrever”, reflete.
Neste processo tão natural, passou a compartilhar suas experiências enquanto leitora com uma amiga e sua irmã. “Quando conheci as fanfics compartilhei com elas, que passaram a gostar e participar tanto quanto eu da leitura e da escrita de fanfics. Essa minha amiga e irmã são, hoje em dia, sócias e donas da editora junto comigo. Amigas de infância e sócias, trabalhando com algo que nos traz prazer e sempre fez parte das nossas vidas”.
Fanfics no mercado literário
O fenômeno existe há pouco mais de um ano no Brasil e talvez ainda seja impossível prever seu futuro. Mas uma análise pode ser feita no cenário atual: o público que lê fanfics originalmente de plataformas virtuais como o Wattpad está disposto a comprar as obras físicas. Não apenas porque gostaria de ter a história em mãos, mas também para apoiar os escritores - denominados de “ficwritters” na internet - que acompanharam, às vezes, desde a publicação do primeiro capítulo.
“Eu não tenho conhecimento de editoras no exterior que estejam trabalhando nessa ideia, embora eu não duvide, até porque já vi, por exemplo, os próprios leitores fazendo versões impressas para uso pessoal das fanfics que eles gostam”, diz Lorena. Em relação ao Brasil, percebe que ainda há muitas barreiras a enfrentar: “a literatura aqui é muito desvalorizada. Lembro que, quando falei de abrir uma editora, até comentaram comigo que o mercado brasileiro para livros é muito ruim. Então é um processo que envolve muito esforço, muita divulgação, e no final, funciona, ou tem funcionado até o momento”.
Existe também um preconceito do público geral em relação a autores e produtores de fanfiction. “O grande preconceito que o público tem com fanfics está muito relacionado com o fato de que qualquer um pode ir lá e escrever uma história, e isso não é algo ruim, já deixo claro. A plataforma é gratuita, você não está gastando seu dinheiro com nada, então caso não goste de algo, basta não ler”, avalia.
“Existem milhares de histórias sendo postadas diariamente em diversas plataformas, escrita por pessoas de diferentes idades, crianças, adolescentes, adultos… Com tanto conteúdo assim, é de responsabilidade do leitor saber filtrar o que vai ler, pois existem tanto histórias boas, quanto histórias ruins”, pontua. Ela sabe que, com os livros publicados por editores, existe um processo de seleção, mas ainda há uma grande quantidade de histórias que muitos não gostam. “Nem por isso o mundo literário inteiro é tido como ‘ruim’, assim como fazem com fanfics”.
Depois de um ano, o objetivo dessas editoras é expandir sua atuação e extrapolar os limites de grupos de fãs. Mais que isso: elas se transformaram em uma maneira de autores ganharem visibilidade em um mercado de difícil inserção. Para Vitória Almeida, da Euphoria: “As editoras tradicionais atualmente trabalham através dos agentes literários, o que limita o número de autores que eles conseguem ter acesso. Existem muitos jovens autores nacionais por aí que não têm acesso a esses agentes literários. As editoras independentes vêm como uma forma de inserir esses escritores no mundo literário, de dar visibilidade e usar nosso trabalho para que esses autores consigam ser mais vistos, ganhar mais espaço”.
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