70 anos de Ana Miranda: "Os desenhos contam minha vida"

Com 70 anos recém-completados, a escritora cearense Ana Miranda reflete sobre sua carreira literária, sua realidade durante a pandemia e sua relação com os desenhos

Sem planos estabelecidos para o futuro além de salvar o planeta, a escritora cearense Ana Miranda mantém-se no presente, guiada pela necessidade de viver. Em seus 70 anos recém-completados, publicou dezenas de obras, principalmente, ligadas ao romance histórico. “Boca do Inferno” (1989) “O Retrato do Rei” (1991) e “Dias e Dias” (2002) são alguns dos que podem ser citados. Não só: também escreveu livros infantis, como “Mig, O Descobridor” (2006) e “Menina Japinim” (2014). Ainda apaixonada pela literatura e pela formação de palavras, distanciou-se um pouco desse trabalho para focar em seus desenhos, hábito que cultiva desde a infância.

Durante a pandemia e o isolamento social, encontrou o prazer nas crônicas que escreve semanalmente ao O POVO e na produção visual. Tem a vontade de construir uma obra somente com as imagens que cria, porque elas formam uma espécie de narrativa autobiográfica. “Os desenhos contam minha vida, os momentos que vivi. Mostram minha vida interior e a vida relacionada à sociedade”, diz. Em entrevista ao O POVO, a autora discorre sobre sua carreira literária e sua relação com os desenhos. Confira:

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O POVO - Aos 70 anos, como você percebe sua trajetória na literatura?
Ana Miranda: É uma trajetória no sentido de cada vez mais fazer textos de arte literária, da arte da palavra. Eu começo a minha obra de prosa com “Boca do Inferno”, que foi o primeiro romance que publiquei. E, já neste livro, tem uma semente do que depois viria a germinar, que é esse amor pela palavra, essa paixão pela arte de construir com palavras. Como o pintor faz suas pinturas com as tintas, eu fui cada vez mais sendo uma artista da palavra. Meus livros foram ficando mais experimentais, trabalhados no sentido de uma linguagem. Isso foi o que me deu mais prazer em toda essa trajetória.

O POVO - Você tem dezenas de livros publicados, alguns dos sempre citados pelo público são “Boca do Inferno”, “Dias e Dias” e “A Última Quimera”...
Ana Miranda: “Boca do Inferno” é meu livro mais vendido, que até hoje é o que me dá mais sustento em termos de venda. Os outros são “Dias e Dias” e “A Última Quimera”. São três livros muito utilizados como livros de paradidáticos. “Boca do Inferno” é muito utilizado por professores que querem fazer a contextualização do barroco brasileiro. O mesmo ocorre com o romantismo brasileiro em “Dias e Dias”, que é sobre o Gonçalves Dias. E o terceiro livro mais procurado é “A Última Quimera”, que é do Augusto dos Anjos e fala sobre o pós-simbolismo, que é uma questão literária que interessa muito. Minha obra está ligada à literatura mesmo, são livros sobre literatura. São de ficção, mas são livros sobre livros, livros sobre escritores e mais do que propriamente um comentário do cotidiano e do contemporâneo.

O POVO - Mas, em sua visão como autora, qual sua obra que mais lhe marcou?
Ana Miranda: A obra que é um marco na minha trajetória é “Desmundo”, porque, a partir dele, consegui uma libertação muito grande na questão da linguagem. “Boca do Inferno” e os livros anteriores ao “Desmundo” são muito respeitosos quanto à construção do romance moderno, respeitando as regras de construção do romance, as regras tradicionais. A partir do “Desmundo”, começo uma libertação. Começo a escrever romances históricos na primeira pessoa, que é uma coisa paradoxal, porque você não pode, quando está narrando na primeira pessoa, fazer os passeios que o romance histórico solicita. Mas eu consegui resolver isso e meu romance predileto é “Desmundo”. Tem esse momento de libertação, como se eu criasse asas. Também foi quando meus desenhos começaram a fazer parte da minha literatura. Eu sempre desenhei desde criança e só no “Desmundo” foi a primeira vez que teve um desenho meu na capa.

O POVO - Em suas histórias, você costuma caminhar por referências da cultura brasileira e cearense. Qual a importância desses múltiplos olhares para a nossa própria cultura, principalmente na atual situação em que vivemos?
Ana Miranda: O György Lukács, em seu livro “O Romance Histórico”, faz uma análise fantástica. O romance histórico, segundo ele, tem uma função de demarcação de uma cultura, de uma identidade, de um rosto, de um povo. No Brasil, não temos a tradição do romance histórico, mas ele surgiu no momento em que havia um processo de globalização no mundo, digamos assim. O mundo estava se tornando pequeno e todas as barreiras entre países e entre culturas estavam caindo. Então surgiu com força no Brasil neste momento, quase como uma defesa das culturas delicadas, das questões culturais da nossa identidade. O romance histórico tem essa característica. É um gênero muito apreciado pelos leitores e não tanto pelos críticos. Eu adoro romances históricos, adoro viajar por outros tempos, aprendo muito. Acho que escrevo romances históricos por isso, por gostar de passear em outras épocas.

O POVO - Durante a pandemia, que persiste há quase um ano e meio, sua relação com a produção literária mudou de alguma forma?
Ana Miranda: A pandemia não teria mudado nada na minha vida, porque essa questão de isolamento e ficar dentro de um escritório escrevendo foi exatamente o que fiz nos últimos 30 anos. É uma vida completamente dedicada a escrever, a ler, a amar a literatura, a conversar com as pessoas sobre livros. A pandemia normalmente viria até mesmo para aprofundar isso. Mas a quarentena teve o surgimento de uma vida virtual. Eu não era de grupos de Facebook, nada disso. Eu via pouquíssimo. Eu tinha internet, mas, com a pandemia, virou uma espécie de rotina na minha vida, que toma muito do meu tempo. Tenho tentado me disciplinar em relação a isso, porque é muito difícil você escapar. Eu deixo o celular do lado da cama, acordo de manhã, penso: ‘que horas são?’, e pego o celular para olhar. Mas, além da hora, tem uma mensagem do meu filho às 6 horas da manhã. Vou ver o que meu filho disse, respondo uma outra mensagem… A sua vida virtual, os pagamentos que você tem que fazer, as solicitações das pessoas, a participação nos grupos e a leitura do que está acontecendo no mundo, isso mudou muito para mim. Eu tinha uma vida muito mais ligada à literatura. Agora minha vida está muito mais conectada com a realidade, porque a realidade está muito intensa, são momentos de grandes dramaticidades no Brasil, principalmente, e no planeta, pelas questões ambientais. Mas o que mais mudou, que aconteceu antes da pandemia, foi o reencontro de um amor da minha juventude. Depois de tantos anos sem viver a vida, eu sinto muito mais vontade de viver. E viver a vida é completamente incompatível com escrever um romance. O romance exige uma dedicação, uma entrega, a cabeça precisa estar ali. Principalmente os meus romances que, além de toda a dificuldade da escrita, ainda têm a recriação histórica, a parte de leituras, de viagens a outras épocas, a criação de novas linguagens. Cada romance meu é um novo narrador, uma nova linguaguem... São coisas muito difíceis. Então tenho tido muito prazer em escrever as crônicas do O POVO e tenho tido muito prazer em desenhar, que são coisas que não exigem uma entrega de um tempo tão grande.

O POVO - Quais são suas inspirações para a produção de desenhos?
Ana Miranda: Eu não sou uma artista visual, não me considero uma artista visual. Sou uma pessoa que desenha desde criança. Eu sinto necessidade de desenhar, eu desenhei a vida toda. Tenho uns 2 mil desenhos guardados e mais alguns que fui dando para as pessoas. É uma atividade que me dá muito prazer e que responde a uma necessidade minha de expressão lúdica, de descanso. A minha inspiração é autobiográfica. Fui observando, quando organizei em pastas esses 2 mil desenhos, que existe uma autobiografia. Tenho vontade de publicar um livro com muitos desenhos, porque eles contam minha vida, os momentos que vivi. Mostram minha vida interior e a vida relacionada à sociedade.

O POVO - Para você, os desenhos e a literatura se conectam de alguma forma?
Ana Miranda: Todas as artes se interligam. Tudo se interliga no mundo. Eu sou adepta à teoria quântica. Tudo está interligado, principalmente, as artes entre si. Elas têm uma conexão. Quando comecei a utilizar meus desenhos como ilustração, acompanhando os meus livros, a sensação que eu tinha e que algumas pessoas comentaram que tinham a mesma sensação, era que os desenhos revelam, de uma maneira diferente, exatamente o que está por trás daquelas linhas. Há uma conexão grande. Mas são estados de espírito diferentes. Quando eu desenho muito, não consigo escrever um romance. Quando estou escrevendo um romance, não consigo desenhar. São modos de funcionamento mental diferentes. Existe essa dicotomia, mas são conectadas na profundeza, Elas são conectadas pelos sentimentos, pelas emoções, pelos pensamentos, pelos desejos, pela fantasia e pelos sonhos.

O POVO - O que podemos esperar para o futuro?
Ana Miranda: Não tenho planos para o futuro… a não ser salvar o planeta.

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