De Emília à Cuca: primeiro livro da série "Sítio do Picapau Amarelo" completa 90 anos
Em 1931, o escritor Monteiro Lobato lançou o livro "Reinações de Narizinho", que daria início à coleção de mais de 20 volumes da série "Sítio do Picapau Amarelo"
09:00 | Mar. 06, 2021
Quantos contextos de vida existem em apenas um Brasil? Considerado um dos maiores países do mundo, é inevitável que seus habitantes cresçam em ambientes completamente diferentes. Alguns nasceram sob o sol do interior do Nordeste, onde o sertão permeia as relações sociais e culturais. Outros foram criados em meio ao frio, à pampa e ao cenário pacato do Sul. Já alguns se constituíram nas grandes capitais e sequer conhecem a realidade dos que estão a poucos quilômetros de distância. Mesmo tão afastados fisicamente, existe um lugar no País que conecta todas essas realidades. Ele está na imaginação dos brasileiros e foi o espaço para várias aventuras compartilhadas durante a infância: o Sítio do Picapau Amarelo.
Há 90 anos, o escritor Monteiro Lobato (1882 - 1948) lançou o primeiro livro da série de 23 volumes, “Reinações de Narizinhos”. Surgia, assim, uma das principais narrativas da literatura infantil brasileira. Na história, crianças se identificam com o gênio da boneca Emília, inspiram-se no espírito de liderança de Pedrinho e têm empatia com a bondade de Narizinho. Os três viram amigos que, na mesma idade dos leitores, podem brincar através de um livro. Tornam-se quase membros da família, assim como a contadora de histórias, Dona Benta; a melhor cozinheira, Tia Anastácia; e o cientista mais inteligente, Visconde de Sabugosa. Até mesmo o medo da Cuca é um sentimento dividido entre os pequenos leitores.
Na época em que a obra foi publicada, o País ainda era um importador de conteúdos infanto-juvenis. Fábulas do francês Jean de La Fontaine (1621 - 1695) e Esopo, por exemplo, dominavam o imaginário brasileiro, mas não faziam referências à realidade nacional.
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Por outro lado, já havia defensores da inserção do folclore nas narrativas pelas gerações anteriores, como José Veríssimo (1857 - 1916), Araripe Junior (1848 - 1911) e Sílvio Romero (1851 - 1914). “Monteiro Lobato dá sequência a essa tendência de renovação e abre caminho para que a literatura brasileira reencontre sua identidade nas formas de expressões regionais, locais e populares”, afirma Sarah Diva, professora de literatura brasileira da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Ao tratar de uma realidade exclusiva do País e ainda com uma obra destinada às crianças, Lobato se tornou o precursor de características irreversíveis na literatura. “Ele devolveu aos brasileiros o seu próprio imaginário, pois o País, sobretudo na área de produção literária infanto-juvenil, ainda tinha os olhos voltados para a tradição europeia. A partir dos seus livros, os brasileiros reencontram-se consigo mesmos, identificando-se nas narrativas que tinham sua origem no imaginário nacional”, comenta a pesquisadora.
Quando os livros começaram a ser lançados, em meados da década de 1930, o mercado editorial cresceu. No período, esse segmento comercial ainda era fraco, mas “O Sítio do Picapau Amarelo” se tornou um sucesso entre as crianças logo no início. “Ele ajudou a formar um público leitor fiel e sólido em um país que ainda engatinhava no mercado editorial e na ampliação da rede de leitores. É um marco espetacular num país, na época, semialfabetizado”, explica Sarah Diva.
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O sítio e a História
O sítio virou um espaço onde as crianças tinham liberdade de imaginação, mas ele também representava parte da realidade em que o Brasil vivia. “A série nos mostra uma nação ainda a tirar do campo a sua subsistência, com resquícios da escravidão”, identifica Daniel Alencar, doutorando em História na Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador da obra de Monteiro Lobato.
“No entanto, nas terras de Dona Benta, encontramos indícios de mudanças a ocorrerem no Brasil, tais quais os avanços científicos e a necessidade de indústrias de base, os diálogos entre as ideias locais e os novos conhecimentos europeus e norte-americanos, as novas correntes educacionais e as discussões em torno da cidadania”, continua. Segundo ele, a história fictícia apresentou caminhos disponíveis para o país percorrer nas primeiras décadas do século XX.
Em sua perspectiva, Monteiro Lobato questionava sobre o tempo histórico que estava inserido por meio da literatura infantil. “Dentre suas incertezas, o ‘atraso’ da nação era sua maior aflição. De que maneira construir um Estado-nação com tanta miséria? Como modernizar as estruturas sociais e econômicas em território vastíssimo? Na percepção dos intelectuais, o contraste entre o Brasil e os Estados Unidos, por exemplo, era interpretado como um descompasso temporal. Vivíamos no ‘ontem’; os norte-americanos, já no ‘amanhã’”, argumenta.
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Para o pesquisador, o autor abordava questões que extrapolaram as dicotomias do moderno e do atraso. Suas perspectivas sociopolíticas convergiam nas aventuras. “O conhecimento livresco de Dona Benta não anula os saberes folclóricos de Tia Nastácia; Narizinho e Pedrinho brincam com bonecas de pano e sabugos de milho, mas integram, em suas reinações, os novos astros do cinema. Mesmo a indústria do petróleo não destrói o modo de vida campestre. Dessa maneira, Monteiro Lobato sintetizou os vários tempos da nação em seus textos infantis”, diz.
Mas o que o autor escreveu há quase um século permanece presente nas estruturas sociais brasileiras. “Continuamos a viver em uma nação com enormes desigualdades socioeconômicas; também perduram as distinções étnico-raciais em nosso país; insistimos no ensino tradicional, apesar dos seus parcos resultados”, revela. De acordo com o pesquisador, o escritor defendia que os brasileiros deveriam educar as crianças para resolver as questões nacionais do futuro.
“Hoje, cem anos depois do lançamento de ‘A menina do narizinho arrebitado’, encaramos a subsequência de tais impasses com perplexidade... e não podemos contar com o ‘pó de pirlimpimpim’ para resolvê-los”, finaliza.
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O racismo na obra de Monteiro Lobato
O racismo nos textos infantis de Monteiro Lobato é explícito: “Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe”; “Negra de estimação”; “Negra beiçuda”; e “Tia Nastácia trepou que nem uma macaca de carvão”. Todos são termos que podem ser encontrados entre as páginas de “Sítio do Picapau Amarelo”.
Em meados de 2010, suas obras e sua carreira passaram a ser contestadas. Alguns defenderam que os livros não deveriam ser lidos para crianças, outros acreditavam que seus conteúdos poderiam ser estudados, caso existisse uma contextualização histórica.
“As relações sociais num país colonizado e que teve a escravidão como força de trabalho serão sempre tensas. E a literatura está imersa nesse caldeirão. O revisionismo é interessante para analisar em que modos a sociedade se organizava para não repetir os erros passados. Daí a condenar a obra do autor que está sintonizada com o seu tempo e condições de produção é outra coisa”, opina Sarah Diva.
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Daniel Alencar também comenta: “o Sítio nos revela um país ainda campestre e com resquícios da escravidão. Em ‘Reinações de Narizinho’ (1931), a Tia Nastácia é descrita como uma ‘negra de estimação’ logo na primeira página. Além disso, o conhecimento livresco é inacessível aos personagens negros, que resistem à lógica científica e transmitem as históricas folclóricas aos netos de Dona Benta”.
Em sua visão, o autor trouxe aspectos da situação que a população negra convivia em um período pós-abolição, mas ele tentou suavizar as relações sociais. “Não por acaso, as personagens que orientam as narrativas são brancas ou, no caso de Emília, nutre ideias cruéis no que toca aos considerados ‘subalternos’”, continua.
Com o objetivo de adaptar a literatura de Monteiro Lobato para os tempos atuais, sua bisneta, Cleo Monteiro Lobato, publicou nova versão de "A Menina do Narizinho Arrebitado", que está disponível para compra. Lançada pela primeira vez em 1920, integrou o primeiro capítulo de "Reinações de Narizinho" (1931) anos depois.
O objetivo de Cleo é publicar as atualizações de todas as partes do primeiro livro de seu bisavô. Em dezembro de 2020, ela escreveu nas redes sociais: “mantenho a essência da obra original de meu bisavô, porém revejo algumas caracterizações e referências. Tia Nastácia, por exemplo, personagem tão importante e influente, ganhou uma nova roupagem, com ilustrações do artista pernambucano Rafael Sam, conforme a evolução social que tanto desejo para o Brasil neste momento".
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Adaptações para a TV
A história foi adaptada pela primeira vez pela TV Tupi. Com direção de Júlio Gouveia, o programa foi exibido entre 1952 e 1963. As cenas, realizadas ao vivo, tinham um cenário fixo: a varanda do sítio. Mais de 300 episódios foram exibidos.
Na década de 1970, “Sítio do Picapau Amarelo” ganhou uma versão para a televisão pela Globo. Com direção de Geraldo Casé, o programa ficou no ar durante quase uma década. Destinada ao público infantil, tornou-se um dos mais importantes conteúdos televisivos de sua época.
Criada para ser um conteúdo que unia educação e entretenimento, a série consagrou músicas como “Sítio do Picapau Amarelo”, de Gilberto Gil; “A Cuca Te Pega”, composição de Dori Caymmi e Geraldo Casé; e "Visconde de Sabugosa", composta por João Bosco e Aldir Blanc.
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Desde segunda-feira, 1º de março, a obra está sendo exibida no canal Viva, durante todos os dias da semana, sempre às 10h30min. Além disso, é possível assistir a essa adaptação clássica nos canais virtuais da Rede Globo.
Em 2001, há exatos 20 anos, a segunda versão da emissora foi produzida e ficou no ar por meia década. Com episódios que duravam aproximadamente 30 minutos, a obra teve vários artistas em seu elenco, como Isabelle Drummond, Cassiano Carneiro, Leandro Léo, Aline Dahlen, Danielle Valente e Lara Rodrigues.