"A Metrópole para além do Instagram": crítica de Humberto Cunha de peça com Silvero Pereira e Gyl Giffony
Peça de Silvero Pereira e Gyl Giffony, apresentada inteiramente de forma online, deve ganhar nova temporada no mês de julhoA primeira vez que vi a peça de teatro "Metrópole", de Rafael Barbosa, encenada por Silvero Pereira e Gyl Giffony, faz vários anos. Na ocasião, tive a sensação similar àquela de alguém que escuta uma nova música de um cantor que admira, quando se fica na ambiguidade de sentimentos como evoluir-estacionar, criatividade-mesmice, gostar-não gostar...
Leia também | Silvero Pereira e Gyl Giffony driblam pandemia com apresentação online de peça
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Depois de um tempo de processamento, percebi que meu desconforto com a peça estava no fato de que eu não queria encarar as radicais rupturas por ela propostas, sobretudo as de uma reivindicação humanamente universalista e performaticamente urbana como, aliás, sugere seu próprio nome.
Dizer mais do que isso imagino ser afrontoso à proposta do dramaturgo, pois não é uma peça para ser contada, mas para ser sentida, e o elemento que mais impulsiona isso é exatamente a viga-mestra do teatro, que é a palavra lapidada, no caso, tão afiada que a plateia chega a perceber as faíscas resultantes da esgrimia verbal entre a dupla de personagens que povoam as cenas.
Quando recebi a notícia de que Silvero e Gyl apresentariam a peça através do Instagram, fiquei apreensivo, com medo de ser contraditado numa afirmação que eu houvera feito publicamente em uma “live”, de que o teatro exige presença física de artistas e espectadores. Meu medo era o de que fosse ofertado ao público uma encenação “ao vivo”, semelhante à gravação de uma obra teatral por câmeras fixas, daquele tipo que frustra todo mundo, por não se tratar, no apurado final, nem de teatro nem de televisão.
Mas, graças a Dionísio, eu estava errado, completamente errado! O que os dois atores - que também assumiram o papel de encenadores - fizeram foi, ao menos para mim, revolucionário: criaram um tertium genus na dramaturgia (a coisa é tão singular que merece até esse latim!), cuja base mais forte é o teatro, mas com o domínio da comunicação intermediada por todos os tipos de tela, com a subjugação total dos recursos das redes sociais, propiciando uma catarse típica de quem subverte um instrumento de opressão contra o próprio opressor.
Pintaram e bordaram: os filtros do Instagram deixaram de ser um recurso abobalhado de caricaturas inócuas para exibir os estados da alma; as duas casas em que se encontravam os atores viraram palcos apartados mas, curioso!, visceralmente juntos; e a própria metrópole, no caso a Fortaleza dos já quase 5.000 mortos pelo corona vírus, enfim, mostrou-se como grande personagem.
O que Silvero e Gyl fizeram ontem certamente será objeto de reprodução, aprimoramento e deformações por tantos que viram e verão o espetáculo, mas vaidoso que sou, escrevo essas linhas para me gabar junto aos meus pósteros de ter testemunhado o surgimento, na dramaturgia, de algo grandioso.
F. Humberto Cunha Filho
Professor de Direitos Culturais (Unifor)