O que a literatura ensina sobre o confinamento

Inúmeras obras da literatura trataram do confinamento forçado ou autoimposto e de eventos traumáticos. Mas como cada uma reagiu quando o real ultrapassou o ficcional?

20:11 | Abr. 10, 2020

Por: Henrique Araújo
0804capa04 (foto: Carlus Campos)

Há poucos dias, já em meio à pandemia do novo coronavírus, o anúncio de uma livraria londrina causou estranheza a seus clientes ao informar que os livros da seção de pós-apocalipse haviam passado à de atualidades.

A brincadeira embute uma pergunta a sério: em tempos de suspensão forçada das atividades cotidianas e de profunda ansiedade ante cenários imprevistos, o real ultrapassara o ficcional?

Mais: a infecção em massa que se espalhou pelo planeta, encurtando a geografia e inutilizando sistemas de saúde, diluiu as fronteiras não apenas físicas, mas também imaginárias?

São interrogações que levam a outras, ainda muito precoces, mas que certamente estarão no horizonte próximo.

Do Decamerão à Morte em Veneza, passando por outras referências, a literatura sempre apresentou respostas diferentes ao mesmo problema: o confinamento, seja o autoimposto como jogo de prazer erótico ou social (Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, por exemplo); seja o compulsório, resultado de variáveis políticas ou biológicas que levaram à reclusão e daí à interpelação de si como questão ética fundamental (É isto um homem?, de Primo Levi).

Um número considerável de obras, de romances a ensaios, pode ajudar a pensar não apenas a noção de fim, muito presente nestes dias em que as estatísticas de óbitos são atualizadas freneticamente no mundo todo como atos burocráticos de funcionários kafkianos e os mortos sem rosto emergem em tabelas como espectros.

Mas principalmente sobre a ideia de segregação e de restrição num momento em que o simples deslocamento é impeditivo e o ato mecânico de ir e vir ganha outras conotações, que se relacionam diretamente à saúde.

De maneiras diversas, A peste, de Albert Camus, citada frequentemente por sua temática atual e singularmente preditiva, e Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch, narram um tempo de enfermidade e de escassez, de reorganização social e de recuperação do humano em meio a escombros causados por episódios cuja irrupção exorbita qualquer possibilidade de controle.

Separados no tempo por muitas décadas, os dois trabalhos, um romance e outro híbrido de romance e reportagem, tratam de uma matéria comum: a resistência. A seu modo, descrevem esse mundo novo: o que sobrevém à peste, com suas mazelas, simbolismos e heroísmos banais, e aquele que se mantém a despeito do desastre de uma usina nuclear, com as marcas fixadas no corpo individual e coletivo das pessoas, que recorrem sobretudo à memória na tarefa de reconstruir suas vidas com fragmentos do passado.

Outras experiências literárias, porém, exploraram caminhos que conduziram a cenários que talvez se aproximem ainda mais do que vivemos agora, de incertezas e perspectivas enevoadas.

É o caso dos romances A estrada, de Cormac Mccarthy, e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, cujo denominador comum, além de terem sido adaptados com sucesso para o cinema, é o de que apresentam como força estética a capacidade de antecipar o dia seguinte ao da falência de toda a organização do aparato social.

Neles se lê a luta por sobrevivência depois do caos inevitável, a morte da comunidade e a instauração da ordem do barbarismo, numa batalha na qual se opõem valores de solidariedade e individualismo, de globalização e tribalismo.

Mais ou menos como vemos aqui, em 2020, quando países interceptam cargas de máscaras e insumos, numa pirataria contemporânea sem medida, e nas ruas se confrontam a todo instante os interesses públicos e os privados.

Vistas como exercícios antecipatórios, algumas distópicas e outras não tanto quanto gostaríamos, essas obras se abrem a universos avançados ultrarrealistas e formulam perguntas que ecoam no contemporâneo, tais como: com que palavras descreveremos os eventos que testemunhamos agora?

Walter Benjamin escreveu que os soldados que voltavam da guerra estavam sem memória. Não podiam narrar. Assim como eles, e é isso que a literatura talvez ensine, nosso vocabulário para a pandemia ainda está em construção.