Crítica: original, "Coringa" é estudo de personagem que aborda diversos assuntos sociais

Vítima da sociedade, pessoa com transtorno mental, ícone anti-estabilishment, psicopata assassino. O acerto de "Coringa" é não tentar fechar o perfil do maior vilão dos quadrinhos em uma caixa só

00:08 | Out. 02, 2019

Coringa chega aos cinemas nesta quinta-feira (foto: Divulgação / Warner Bros.)

Hoje vivemos o ápice do cinema de super-heróis. Filmes milionários, lucros bilionários e risco mínimo para a indústria fizeram com que obras oriundas dos quadrinhos virassem o porto seguro dos estúdios. Particularmente a Marvel se propõe a manter o status quo com obras que pouco diferem umas das outras — e até por isso são sempre eficientes. Já a DC/Warner é mais de partir para a ousadia, daí ter errado tão retumbantemente com Esquadrão Suicida e Batman vs. Superman.

Por vezes, porém, a ousadia premia. E assim surge Coringa, de Todd Phillips, uma obra absolutamente original, sem par direto nos quadrinhos e que olha mais o mundo onde vivemos que a versão fictícia das HQs.

Conceitualmente, a proposta é muito clara. Um estudo de personagem do vilão mais famoso (e amado/odiado) da história dos quadrinhos. Dirigido e co-roteirizado pelo cineasta responsável pela infame “trilogia” Se Beber, Não Case (2009-2013), o filme começa a acertar no protagonista: Joaquin Phoenix, candidato seríssimo a melhor ator do mundo em sua faixa etária.

A partir disso, Todd Phillips aborda o pensamento de Rousseau de que a sociedade corrompe o indivíduo. Pela primeira vez nos cinemas Gotham City parece, de fato, o pior lugar do mundo para se viver. E Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é claramente uma vítima da sociedade. Dono de traumas e problemas psiquiátricos meio indefinidos, com uma mãe tanto quanto delirante, vivendo de um sub-emprego, apanhando dia sim, dia não.

Abandonado pelo poder público, que cancela o acompanhamento que Arthur tinha de uma assistente social, deixando-o sem medicamentos necessários para sua sanidade psicológica, o palhaço sem graça começa a mergulhar em pensamentos sombrios.

Nisso, Coringa começa a atirar para todos os lados. Municiado de uma pistola, Arthur acaba empoderado e vive sua jornada Walther White — protagonista/vilão da série “Breaking Bad”. Quando ele mata três executivos abusivos em um metrô, começa como legítima defesa e termina como execução. O palhaço assassino acaba virando um ícone anti-estabilishment por ter ousado matar gente rica. O estado psicológico da mãe dele entra em xeque. Surge uma namorada para Arthur. Entra a família Wayne — com direito a Bruce Wayne, futuro Batman, ainda criança. Enfim, não faltam balas.

Acaba que tanto “tiro” miram mais no “estado da arte” do que nas propostas sociológicas da obra. Afinal, qual a tese no centro da trama? É de que ninguém nasce mau? É de que pessoas doentes devem ser excluídas da sociedade? É de que os ricos abusam dos pobres, destruindo a sociedade? É de que homens têm direito de seguir compulsivamente mulheres? Ou quem sabe o filme ataca a mídia sensacionalista, a partir da figura do apresentador Murray Franklin (Robert de Niro)?

Tudo é tema espinhoso. As respostas vêm sempre da interpretação da obra — e é pressuposto da arte que as leituras mais contraditórias sejam possíveis, válidas e comprováveis. Coringa levanta tudo isso, por vezes de forma irresponsável — dando vazão a que o filme se torne porta-voz de uma visão autoritária e doentia de mundo.

Talvez a proposta aqui seja apenas de mostrar que é um passo longo demais o de abraçar o caos e rir de toda desgraça.