Artigo: O papel da ONU na governança global digital
O Professor Matheus Atalanio, advogado especializado em direito internacional público, nos escreve com exclusividade sobre uma governança global digital
13:16 | Fev. 20, 2025

Por Matheus Atalanio, advogado especializado em direito internacional público, professor da Universidade de Fortaleza e pesquisador do Centro Estudos sobre a Proteção Internacional de Minorias da Universidade de São Paulo.
No mundo contemporâneo, onde a tecnologia molda interações humanas e reconfigura dinâmicas de poder, o papel da ONU e de organismos multilaterais enfrenta desafios. A crescente desinformação, a concentração tecnológica e as disputas pelo controle de dados impõem questões fundamentais: essas instituições podem de facto regular esse ambiente e mediar conflitos derivados da digitalização global?
Historicamente, a ONU tem sido um palco de negociação para controvérsias entre Estados, desde conflitos armados até mudanças climáticas; no entanto, na governança digital, seu protagonismo é questionado. O modelo multilateral baseia-se na cooperação entre Estados, enquanto a revolução digital é dominada por grandes corporações privadas, que impactam bilhões sem uma estrutura regulatória eficaz, colocando em risco a soberania digital e ampliando assimetrias no acesso à inovação. Empresas do Vale do Silício e gigantes chinesas detêm a maior parte da infraestrutura digital, das redes sociais às nuvens de armazenamento. Essa dependência cria vulnerabilidades para países sem capacidade de competir em inteligência artificial, telecomunicações avançadas e segurança cibernética. A ONU tenta responder a essas questões com iniciativas como a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS) e o Grupo de Alto Nível sobre Cooperação Digital, mas enfrenta resistência de atores poderosos.
No campo da desinformação, o desafio é igualmente complexo. A manipulação de informações, amplificada por algoritmos, alimenta polarizações políticas, interfere em eleições e enfraquece instituições democráticas. A ONU e organismos como a UNESCO e a UIT promovem campanhas para mitigar esses impactos, mas a falta de mecanismos de enforcement global reduz a efetividade dessas ações.
A capacidade da ONU de mediar conflitos tecnológicos é, portanto, limitada. Embora possa fomentar debates e estabelecer normas, sua atuação prática depende da cooperação entre Estados e empresas. No atual cenário de rivalidade tecnológica entre potências como EUA e China, as disputas pelo domínio da inteligência artificial, da computação quântica e das redes 6G sugerem dificuldades para impor uma governança digital.
Diante desse cenário, a questão central persiste: o multilateralismo será capaz de se adaptar à nova ordem digital ou permanecerá “refém” de estruturas que privilegiam poucos em detrimento da maioria? A resposta dependerá da vontade política dos Estados de democratizar o espaço digital e evitar que a tecnologia se torne um vetor ainda maior de desigualdade global.