Crônica: Quem colocou a memória na cabeça do átomo?

Quem colocou a memória na cabeça do átomo?, pergunta o físico e músico Rodger Rogério.


Perguntei ao físico, músico e ator Rodger Rogério se ele acreditava em Deus. Ele respondeu ato contínuo, “Claro, quem você acha que colocou a memória na cabeça do átomo?”. Por alguns anos essa pequena parte de um diálogo maior, ficou na minha cabeça esperando o momento de ir para o papel.

Eu dirigia, Rodger ao lado, gigante amiudado, mergulhado no banco do passageiro, com sorriso de menino, chapéu preto, braços cruzados, mente aberta, palavras, números, equações. O talentoso compositor e multi-instrumentista Vitoriano completava o trio. Isso foi num dos intervalos da dolorosa pandemia.

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De lá para cá, com regularidade, recordava de trechos da ótima conversa que ocorreu durante o tempo de trajeto entre a casa do artista que recentemente ganhou o Kikito como melhor ator coadjuvante no festival de cinema de Gramado, e a Barra do Ceará que abriga o projeto Casa de Vovó Dedé onde hoje estudam música, cerca de 2 mil crianças e adolescentes.

Voltando ao diálogo, o tempo ia passando e uma névoa tornava turva o conjunto de frases. A medida que a embaço mais se fortalecia, aumentava minha culpa. O que eu faria com essa história? Rodger, que é professor de física da Universidade Federal do Ceará, ensinou, por meio da frase que dá título à essa crônica, que átomos têm memória, inclusive lembram de onde estavam dentro de uma bateria quando sacudida, voltando a sua posição inicial.

Noite de sexta, dia 27 de setembro. MIS - Museu da Imagem e do Som. Lançamento do disco “Instante Zero ou o Primeiro Sinal Luminoso”. No palco, Vitor Cozilos (guitarra), Plínio Câmara (guitarra e violão), Glauber Alves (contrabaixo), Rami Freitas (bateria), Natália Coehl e Alice David (participação especial nos vocais), Vitoriano (produção, composição, arranjos, voz) e Rodger Rogério (composição, voz, física e história). 


Pois bem, entrei no MIS minutos antes da apresentação, peguei à direita, desci um lance de escada, abri uma porta de vidro pesada com alguma dificuldade, dobrei a direita e olhei para o fundo do corredor em busca de um banheiro, porém...atenção, ouço uma voz familair, volto-me, retorno um pouco e deparo-me com o abraço de um senhor de preto com uma jovem sorridente.

Rodger saíra de uma sala para abraçar sua filha. Há cerca de dois metros, silente, imóvel, assisti ao abraço. Jornalista não entende como essas coisas se dão, mas a mão já acionara o celular para o modo de gravação, e pacientemente, eu o apontava para o fraterno abraço em busca de um registro.

Eles se viram sorrindo, olham para mim com doçura. Eu pergunto:

⁃ Quem botou a memória da cabeça do átomo?
- Eu penso que foi Deus - diz o artista abrindo o velho sorriso de menino.

“Instante Zero ou o Primeiro Sinal Luminoso” é um disco com letras temáticas à física, musicado, organizado e trabalhado, fundamentalmente pelo talento de Vitoriano e a carga poética de Rodger, cuja cabeça brinca “em labirintos e espirais, e explode outra vez a fúria gloriosa das canções”.

Eles sobem ao palco próximo da 19h para apresentar: Instante Zero, Flutua Terra, Lugar Seguro, Vigorar, Receita para atravessar os tempos, Febre noite quente, Preguiça, Primeiro Sinal Luminoso, Quando você me pergunta, Espirais, O mago, Saudade sangue e medo, Pedra Fundamental, Mareados. São 14 músicas das quais tirei frases que, ao longo desse texto, estão entre aspas.

Poucos integrantes da plateia de fãs conseguem ver um susto: Rodger se desequilibra entre o palco e um batente alto. Provando que “não há lugar seguro, não há, nesse mundo”. Mas o barco “tem que navegar, atravessar e os deuses sempre hão de abençoar”. Logo se recompõe porque “pensamento é um poço profundo, e o mistério gira num segundo” e a preocupação daquele instante zero nos faz lembrar os 80 anos de alguém que compôs o pessoal do Ceará.

Fui embora concluindo que o público tem uma relação de afeto com a estranheza da voz do cantor, de admiração com a simplicidade do compositor de “chão sagrado”. Também de contentamento com a consistência musical apresentada por Vitoriano (recomendo ouvir trabalhados anteriores a exemplo de Wild Ones e Olhos fechados).

No primeiro sinal luminoso que parei durante a volta, percebi que “múltiplas essências, fundamentos, teoremas”, não explicam a relação entre a expectativa do público e a dinâmica no palco. Na definição de Caio Napoleão, Rodger é o nosso Lou Reed. Sua voz marginal transita entre galáxias, atmosferas, e diz que o “tempo não existe, mas o campo magnético do amor, sim”. Enfim, eu não sei quem colocou a memória na cabeça do átomo, mas sei quem sempre estará colocando amor no coração de quem esteve naquela noite no MIS.

 

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