Crise das democracias e o avanço da extrema-direita: um fenômeno global

Especialistas ouvidos pelo O POVO destacam situações em comum e o descontentamento com a falta de qualidade de vidas e com a instituições que compõem o estado democrático de direito

Nos últimos anos, as democracias em diversas partes do mundo têm enfrentado crises profundas, acompanhadas de um crescimento significativo de movimentos de extrema-direita.

Esse fenômeno se manifesta em regiões tão diversas quanto a Europa, a Ásia e as Américas, revelando um padrão de descontentamento social, fragilidade institucional e discursos polarizadores que capturam a atenção de amplas parcelas da população. Para entender melhor os motivos que explicam esse fenômeno, O POVO conversou com três especialistas no assunto.

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As recentes bravatas do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, contra vários países, as críticas do magnata estadunidense Elon Musk à situação política da Alemanha, louvando o partido de extrema-direita “Alternativa para Alemanha (AFD)” como solução para o país, que alegou estar em “decadência”, chamam atenção para um fenómeno global simultâneo em que forças políticas internacionais se apoiam. Além da Alemanha, Musk atacou também o governo britânico, pedindo a libertação do Tommy Robinson, ativista preso como agitador de protestos violentos que aconteceram em todo Reino Unido em agosto de 2024, que eclodiram após informações falsas sobre um ataque a tiros no norte da Inglaterra.

Além de Reino Unido e Alemanha, o magnata também já desceu duras críticas aos governos brasileiro e australiano, que têm em comum o fato de serem de espectro progressista.

Alemanha: Entre Refugiados e Fragilidade Política

A Alemanha, considerada um dos pilares da democracia europeia, tem enfrentado desafios sérios que tensionam o sistema político. As consequências da guerra na Ucrânia contribuíram para um aumento expressivo no número de refugiados, exacerbando questões sociais e políticas. A incapacidade do chanceler Olaf Scholz de lidar eficazmente com a dependência energética da Rússia e com as demandas populacionais tem sido interpretada como fraqueza, alimentando a insatisfação popular. Segundo Luiz Philipe, mestre em Direito Internacional, “o aumento no número de refugiados ucranianos e a falta de pulso firme com Putin contribuíram para essa percepção de fragilidade”.

Esse cenário favoreceu o crescimento regional da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema-direita que explora a insatisfação com as políticas migratórias e a percepção de perda de identidade nacional. Ainda segundo Philipe, “a AfD deve crescer regionalmente, principalmente nas áreas fronteiriças ou com maior acesso a migrantes”. Ademais, eventos como um recente atentado em solo alemão reforçam o clamor por segurança e controle mais rigoroso, alimentando a narrativa da extrema-direita.

França: Fragmentação Política e Nacionalismo Crescente

Na França, o governo de Emmanuel Macron tem lutado para manter estabilidade diante de uma ampla coalizão formada para conter a extrema-direita. No entanto, a incapacidade de coordenar eficazmente diferentes grupos políticos resultou em frequentes trocas de ministros e um governo fragilizado. Segundo Luiz Philipe, “Macron não teve habilidade política para organizar os grupos da sua coalizão, resultando em constantes crises internas”.

Ao mesmo tempo, o discurso nacionalista e anti-imigratório ganha força, especialmente em regiões rurais e entre setores da classe trabalhadora que se sentem desamparados pelas políticas públicas. Philipe explica que “a mudança de discurso de Macron para uma linha mais conservadora alienou os grupos mais progressistas da coalizão”, aumentando o apelo da extrema-direita no país.

Coreia do Sul: Polarização e Desconfiança nas Instituições

Na Ásia, a Coreia do Sul viveu recentemente um período de instabilidade que culminou no impeachment do presidente e do presidente interino, refletindo uma crise institucional sem precedentes. Monaliza Torres, doutora em Sociologia, aponta que “a crise na Coreia do Sul reflete uma descrença generalizada nas instituições democráticas e no sistema político”.

Embora o contexto sul-coreano não esteja diretamente ligado às questões migratórias que dominam o debate europeu, o descontentamento econômico e a percepção de corrupção são fatores comuns que alimentam a polarização política. Torres acrescenta que “a emergência de figuras populistas em cenários de crise econômica é um padrão que vemos se repetir globalmente”.

A dimensão global da crise

De acordo com Monaliza Torres, “o crescimento da extrema-direita está intrinsecamente ligado às crises econômicas que afetam as democracias. A promessa de qualidade de vida e mobilidade social, muitas vezes não cumprida, cria um terreno fértil para discursos populistas”. Esses discursos frequentemente elegem um inimigo — como imigrantes ou minorias — e oferecem soluções simplistas para problemas complexos.

A crise das democracias não é apenas política, mas também cultural. Segundo Torres, “a perda de confiança nas instituições democráticas e a desilusão com seus valores são sintomas de um mundo onde as relações de trabalho são cada vez mais precárias”.

Impactos e perspectivas

Os eventos recentes mostram que a democracia precisa se reinventar para resistir aos desafios impostos pelo avanço da extrema-direita. O impeachment na Coreia do Sul, por exemplo, destaca a necessidade de instituições fortes e transparentes, capazes de responder ao clamor popular sem sucumbir a interesses populistas. Da mesma forma, o atentado na Alemanha reforça a urgência de políticas de segurança que não comprometam os valores democráticos.

Uma possível solução passa pela reconfiguração dos partidos democráticos, tanto de esquerda quanto de direita, para atender às demandas materiais da população. Sem isso, os discursos extremistas continuarão a prosperar, ameaçando o futuro das democracias. Ademais, é essencial resgatar a cultura política do contraditório e do debate construtivo, contrapondo-se à beligerância que caracteriza muitos dos movimentos de extrema-direita.

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