Saiba quantos golpes já houve no Brasil ao longo dos séculos
Desde a Independência, o Brasil enfrenta graves investidas contras as Constituições vigentes; Nos 60 anos da Ditadura Militar, nova trama golpista envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro é descoberta
11:18 | Dez. 09, 2024
Nos 60 anos da ditadura militar no Brasil, uma trama golpista envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ex-ministros e ex-militares resultou em inquérito enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), neste fim de ano, após investigações da Polícia Federal (PF).
A tentativa de golpe estava em planejamento entre novembro e dezembro de 2022, mirando a execução do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.
O plano, recentemente descoberto, soma-se a outros episódios de intensas investidas contra os regimes vigentes nas diferentes fases políticas e históricas brasileiras. Outras tentativas e golpes efetivos contra a Constituição ocorreram em diversas ocasiões no país desde a independência política do Brasil, em 1822.
Talvez, para os brasileiros, ao pensar em golpe, a ditadura militar iniciada em 1964, quando o então presidente João Goulart foi deposto e o poder foi tomado pelas Forças Armadas, seja o mais forte na memória coletiva. Mas esse não é o único que marca a história do País e nem foi o primeiro em que houve uso da força militar.
O que é golpe de Estado?
Emmanuel Furtado Filho, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que o golpe de Estado é “uma ruptura súbita e deliberada da ordem política e constitucional de um país, geralmente empreendida por atores internos ao sistema de poder, com o objetivo de tomar ou consolidar o controle do aparato estatal, à revelia do ordenamento jurídico vigente”.
“O conceito remonta a práticas históricas que subvertem o princípio da legitimidade popular em favor de interesses restritos, sejam eles de caráter militar, político ou econômico”, complementa o professor.
Em uma definição mais objetiva, o professor de História Contemporânea da UFC, Kleiton de Moraes, resume golpe, sob uma perspectiva histórica, como “uma ação armada feita por agentes do próprio Estado, ou seja, as Forças Armadas, visando a manutenção do poder ou a alocação de um outro grupo que não está exercendo poder naquele momento”.
Em 5 de janeiro de 1953, Getúlio Vargas sancionou a lei que configura os crimes contra o Estado e a ordem política e social. Vargas é figura conhecida por ter adotado regimes autoritários em seu governo e aderência ao golpismo para manter o poder.
Na história recente, a trama golpista de 2022
Nas variadas formas de derrubar governos experimentadas ao longo de séculos, alguns casos têm como pilares a interpretação enviesada da legislação, como foi exposto no plano de golpe de 2022, que estudou o uso do artigo 142 da Constituição. Relatório da PF de mais de 800 páginas indica que suspeitos o utilizariam para ter suporte jurídico.
A Constituição determina no artigo 142 que: “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem“.
“A cláusula ‘garantia dos Poderes constitucionais’ prevista no dispositivo não implica em autonomia das Forças Armadas para intervir nas instituições, mas sim em sua atuação como última linha de defesa contra ameaças externas ou internas, sempre a pedido de um dos Poderes”, explica Emmanuel Furtado.
“A tentativa de fundamentar ações golpistas no artigo 142 representa uma interpretação deturpada e anacrônica. Essa leitura ignora a essência do texto constitucional, que consagra a soberania popular e o regime democrático. O artigo deve ser lido à luz dos princípios fundamentais da Constituição, especialmente o Estado Democrático de Direito”, complementa.
Para o professor, essa interpretação equivocada não é nova. Ele analisa que trata-se de uma releitura que se relaciona ao histórico de intervenções militares e justificativas legais que foram construídas para sustentar ações autoritárias e que são “resquícios do pensamento político herdado do período imperial e do regime militar”.
Afinal, quais golpes marcam a história do Brasil?
Noite da Agonia: o primeiro golpe do País
Um ano após a Independência, nasce o primeiro golpe do País. Sob o comando de Dom Pedro I, e com o apoio das tropas imperiais, ocorreu a dissolução do projeto de Constituição, pronto em 1823, mas que começou a ser elaborado ainda quando o imperador era príncipe regente, em junho de 1822.
Esse momento marca uma primeira experiência parlamentar no Brasil, mas alguns aspectos do texto proposto não foram satisfatórios para D. Pedro I. O projeto trazia, entre os muitos aspectos: a oposição aos portugueses; a limitação dos poderes do imperador; e tratava também do poder político dos grandes proprietários rurais.
Recusado o projeto, alguns deputados reagiram ao ato de poder do imperador, mas foram presos ou expulsos do País. A medida trouxe forte descontentamento, o que levou D. Pedro I a nomear uma nova comissão para criar a próxima Constituição, a fim de acalmar os ânimos.
Após a conclusão dos trabalhos e com a aprovação do imperador, foi outorgada, em 25 de março de 1824, a primeira Constituição do Brasil. Do entendimento da comissão, quatro poderes foram estabelecidos: Judiciário, Legislativo, Executivo e Moderador. Esse último era exclusivo do imperador e funcionava como uma “chave-mestra” de toda a organização política.
A Constituição de 1824 não teve participação popular na sua elaboração e mantinha alimentado os interesses das elites, especialmente dos grandes proprietários rurais. O sistema eleitoral excluiu a participação de boa parte dos homens e de todas as mulheres, dos escravos e também dos indígenas. Foi instituído o voto censitário, em que o direito de votar era vinculado à renda.
O golpe da maioridade: um jovem de 14 anos assume o poder
Desde o Primeiro Reinado, o império vivia crises econômicas e políticas. Como, após a Independência, em 1822, as reclamações não podiam mais ser dirigidas à Coroa portuguesa, elas convergiram contra o governo central do império, no Rio de Janeiro. Após abdicação de D. Pedro I, entrou em vigor o Período Regencial, um governo intermediário entre os impérios.
Herdadas as instabilidades desse período de regências, o último regente, Araújo Lima, após montar um ministério composto apenas por políticos conservadores, o Ministério das Capacidades, virou alvo de insatisfações.
Em meio ainda às revoltas provinciais, a figura de um imperador era lançada como a chave para unir o Estado e restabelecer a ordem social. Nasce assim o Segundo Reinado (1840-1889), em um movimento que uniu interesses de proprietários rurais, progressistas e grandes comerciantes na defesa de transferir o poder para as mãos do príncipe Pedro de Alcântara, que tinha 15 anos incompletos na época.
De autoria do senador Antônio Francisco de Albuquerque, que ocupou a função de senador entre 1838 e 1863, a tese foi aprovada e o episódio ficou conhecido como Golpe da Maioridade. Em 23 de julho de 1840 teve início o Segundo Reinado, período que durou quase meio século.
A República nasce de um golpe armado
Há 135 anos nasceu, de um golpe armado, a República. A revolução, encabeçada por Marechal Deodoro da Fonseca, estourou no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. A queda do regime monárquico ocorreu sem participação popular e de forma antecipada pelos oficiais, surpreendendo até mesmo as lideranças republicanas.
Deodoro da Fonseca, que passou a não ser monarquista na véspera da revolução, organizou o novo governo, composto por militares, cafeicultores e profissionais liberais, conforme o historiador Gilberto Cotrim traz na sua obra publicada a “História Global - Brasil e Geral”, volume 2.
O professor Kleiton de Freitas resume o período e explica que “o golpe, na verdade, a finalidade do Deodoro era a derrubada do ministério do Império, não era a instituição da República”, porque o marechal não era adepto do sistema republicano. Ele explica ainda que militares e a elite latifundiária encontrou naquele momento a ocasião ideal para destituir a monarquia, mas sem a participação popular.
Assim, é consolidado o terceiro golpe de Estado no Brasil, quando a monarquia de Dom Pedro II é derrubada, em 15 de novembro de 1889, e se dá o início do Governo Provisório, gerenciado por Marechal Deodoro da Fonseca.
“Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de governo da Nação brasileira - a República Federativa”, diz o primeiro artigo do Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889, assinado por Marechal Deodoro, Rui Barbosa, Benjamin Constant e outros.
Golpe de 3 de Novembro de 1891
Após a elaboração da Constituição de 1891, a Assembleia Constituinte foi transformada em uma espécie de Congresso. A esse órgão foi dada a responsabilidade de eleger o primeiro presidente e vice da recém criada República.
Deodoro da Fonseca, com Floriano Peixoto como vice, venceu as eleições, embora não tenha conseguido apoio político suficiente para exercer uma gestão tranquila. Como oposição, o marechal enfrentava grandes cafeicultores de São Paulo, que tinham representantes no Congresso.
Nada satisfeito com as contestações ao seu governo, Deodoro dissolveu o Congresso em novembro de 1891, além de prender os principais líderes da oposição. Sua postura autoritária gerou fortes protestos. A Marinha ameaçou bombardear o Rio de Janeiro com os navios ancorados no porto, episódio que ficou conhecido como Primeira Revolta Armada. As tensões levaram Deodoro a renunciar à Presidência no mesmo mês. Seu vice, Floriano, assumiu.
Era Vargas: três vezes golpe
Em meio ao declínio da política do café com leite, em que a Presidência era ocupada ora por um oligarca de São Paulo, ora por um de Minas Gerais, o próximo nome a substituir o então presidente Washington Luís não estava concordado.
Nas eleições presidenciais de 1° de março de 1930, Julio Prestes venceu Getúlio Vargas, que viria a ser uma das figuras políticas de grande expressão do período republicano. Após a derrota, Getúlio liderou o movimento que ficou conhecido como Revolução de 1930, em que teve apoio de militares, a fim de derrubar o governo do então presidente e impedir a posse de Prestes.
Vargas teve o poder entregue em suas mãos em novembro de 1930. Germinava de um golpe de Estado a Era Vargas (1930-1945), após o movimento rebelde que deu fim à República Velha. No primeiro momento, foi instalado o Governo Provisório (1930-1934), marcado pelo fechamento do Congresso e anulação da Constituição de 1891. Apenas em 1934 o Congresso foi reaberto e uma nova Constituição foi promulgada.
Em 1937, quando Vargas já governava a partir de uma Constituição, começa a ditadura varguista, período chamado de Estado Novo (1937-1945). “O interessante desse golpe é que é o primeiro da história do Brasil em que é usada uma certa conspiração comunista, que nunca se comprovou, e que estaria rondando o poder para tomá-lo”, ressalta o professor Kleiton de Moraes.
O golpe ocorreu em meio ao cenário internacional de ascensão de governos autoritários, como o fascismo na Europa. Internamente, o fantasma do comunismo também foi usado como justificativa para centralizar o poder do governo e para manutenção da ordem. Com o golpe de 1937, apoiado por militares, Vargas garantiu sua permanência no poder. Ao todo, seu governo durou 15 anos consecutivos.
A deposição de Vargas ocorreu em 1945, junto do declínio dos regimes autoritários na Europa, no fim da Segunda Guerra Mundial. “O próprio Vargas é derrubado pelos militares, oito anos depois. Os mesmos militares que o apoiaram, conspiram para a derrubada dele”, destaca Kleiton de Moraes.
A participação civil e militar no golpe de 1964
A derrubada do governo fragilizado de João Goulart deu início a um período de autoritarismo na política nacional. A ditadura militar (1964-1985) “visava a derrubada do presidente eleito, que era identificado com a esquerda”, explica o professor Kleiton de Moraes, da UFC. A ação golpista teve como justificativa também o medo da instalação do comunismo no país. O professor destaca que, à época, havia uma grande polarização entre esquerda e direita, algo inédito nos contextos dos golpes até então e também salienta a participação popular.
Após a deposição de João Goulart pelas Forças Armadas, o país foi governado por cinco militares. O primeiro a ocupar o cargo foi o marechal cearense Humberto Castelo Branco, seguido do marechal Artur da Costa e Silva, do general Emílio Garrastazu Médici, do general Ernesto Geisel e do general João Baptista Figueiredo.
Em meio a um cenário de crime política e econômica, a supressão da democracia estava prevista para ser um período provisório, mas durou 21 anos. Os objetivos da interferência militar eram: restabelecer a ordem social; frear o suposto avanço do Comunismo; e retomar o crescimento econômico.
Uma particularidade do golpe de 1964 foi a participação de setores de empresários, da classe média brasileira e da grande imprensa, além dos militares.
Para o historiador Kleiton de Moraes, “é importante salientar que, no final das contas, a contestação à democracia resulta também de um certo déficit na política em relação à inclusão social. Se uma parte, por exemplo, da população brasileira questiona hoje, inclusive no próprio voto, as instituições democráticas, ou mesmo lembrando a necessidade de volta dos militares ou da própria ditadura, isso também é resultado de uma certa descrença na democracia que não resolveu questões como a ampla desigualdade social ou as profundas violências cotidianas”.
“Então, enquanto a gente não resolver esses problemas estruturais, talvez a gente esteja condenado a viver em torno de golpe de estado e, pior, com apoio de uma parte considerável dessa sociedade”, finaliza.