Quais as semelhanças e diferenças entre o golpe de 64 e o plano de golpe de 2022
Nos 60 anos da ditadura militar no Brasil, o país desvela nova trama golpista contra o regime democráticoO inquérito que indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 36 pessoas pelos crimes de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa foi tornado público ao final do ano em que o golpe militar de 1964 completa 60 anos. Os crimes agora atribuídos foram, conforme a PF, cometidos entre novembro e dezembro de 2022, após o resultado do pleito eleitoral.
A trama golpista de 2022, segundo apuração da PF, foi integrada pelo ex-presidente da República, ex-ministros e militares, além de um padre, incluindo dois cearenses: os generais Estevam Theóphilo Gaspar de Oliveira e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
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“Tanto em 1964, como em 2022, os golpistas discursaram falaciosamente em defesa da liberdade e do estado de direito enquanto assassinavam a democracia. E, conforme as recentes revelações da trama golpista, ‘assassinar’ não seria mera figura de linguagem”, analisa o sociólogo e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Pedro da Costa.
Sobre 2022, o relatório da PF, enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), apresenta detalhes do planejamento em mais de 800 páginas. Um plano traçado, batizado de “Punhal Verde e Amarelo”, foi identificado nas investigações. A articulação previa a execução do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), e do ministro Alexandre de Moraes, do STF.
No período ditatorial, de 1964 a 1985, após a derrubada do presidente João Goulart, o país foi governado por cinco militares que se sucederam no poder, incluindo o marechal cearense Humberto Castelo Branco, que deu os primeiros passos do regime militar.
Fi sucedido pelas gestões do marechal Artur da Costa e Silva, do general Emílio Garrastazu Médici, do general Ernesto Geisel e do general João Baptista Figueiredo.
Diferenças e semelhanças entre 1964 e 2022
Momentos de crises, mas diferentes
Em 1964 imperava um cenário de crise econômica. Na época, havia também a sombra de um fantasma do comunismo. Em meio a um cenário instável, as Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) depuseram o governo.
"Havia em 1964 uma crise política e uma crise econômica. Tinha uma radicalização política e ideológica fortemente marcada por um discurso da Guerra Fria", explica Kleiton de Moraes, professor de História do Brasil Contemporâneo da Universidade Federal do Ceará (UFC).
"Em 2022, por mais que a gente possa identificar como um momento de crise da democracia, porque, enfim, já faz alguns anos que a democracia é questionada no Brasil, a gente não pode dizer que havia uma crise institucional e nem fortemente uma crise econômica", complementa.
Há 60 anos, a interferência no regime democrático, inicialmente, seria de caráter provisório e tinha como objetivos declarados restabelecer a ordem social; frear o suposto avanço do Comunismo; e retomar o crescimento econômico. Mas, a supressão da democracia não foi momentânea e durou 21 anos. Um período marcado por restrições da liberdade democrática por meio dos chamados atos institucionais (AI).
Papel diferente da sociedade e das instituições
Uma particularidade do golpe de 1964 foi o apoio de instituições e população civil. “Parte da grande imprensa, de setores de empresários nacionais, da classe média brasileira, apoiaram a derrubada do João Goulart porque o viam como alguém que podia abrir as portas para o comunismo, porque ele já tinha uma trajetória bem conhecida de contato com o mundo do trabalho”, observa o professor Kleiton de Moraes.
Em concordância, Pedro da Costa ressalta que “grande parte da elite brasileira, civil e militar, estava alinhada contra uma suposta ameaça comunista que colocaria em risco o Ocidente cristão, liderado pelos Estados Unidos. Era o contexto da Guerra Fria, e naquele momento a política externa estadunidense estava particularmente mais atenta à manutenção da influência na América Latina”.
“Diferentemente de 1964, as instituições republicanas de hoje estão consolidadas, fortes, e reagiram muito bem, estão reagindo muito bem”, aponta Mário Albuquerque, ex-preso político perseguido durante a ditadura militar e integrante da Comissão da Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
Forma como militares se viam nos dois episódios
Nos dois momentos separados pelo tempo, “fardados” da alta cúpula das Forças Armadas se colocam como uma “espécie de poder à parte na República, um tutelador do processo político”, diz o sociólogo Pedro da Costa.
Cenários internacionais distintos
Costa acrescenta que “a conjuntura internacional cumpriu papel decisivo nos dois episódios”, ressaltando também que “os fatos relacionados à tentativa de golpe de 2022 ainda estão sendo revelados, mas é plausível supor que segmentos da cúpula das Forças Armadas não tenham dado sequência ao plano golpista em virtude do improvável apoio internacional, principalmente dos Estados Unidos”.
“Se em 1964 o objetivo imediato do golpe de Estado foi a derrubada de um governo bastante fragilizado, o objetivo em 2022 seria a permanência de um presidente derrotado nas urnas e com alto índice de rejeição", comenta o professor da Uece.
Pedro da Costa comenta que os fatos que estão sendo revelados “assustam pela gravidade dos detalhes, mas em conjunto não surpreendem, considerando a permanente ameaça às instituições”. Para ele, “a diferença mais relevante entre os dois processos golpistas é o papel do STF, que se comportou como um guardião do Estado Democrático de Direito ao longo desse último período”.
Heranças da ditadura militar
Terminado o mandato de Médici, o general Ernesto Geisel foi escolhido presidente pelo voto indireto, em 1974, e iniciou um lento caminho para a abertura política. Mais tarde, o Congresso Nacional, convertido em Colégio Eleitoral decidiu, ainda de forma indireta, Figueiredo como próximo presidente.
Transição da ditadura para o agora
Um grande marco do processo de redemocratização foi a Lei da Anistia, promulgada em 1979, momento em que presos políticos puderam ser libertados, exilados tiveram a possibilidade de retornar ao País, além de políticos que tiveram direitos cassados terem recuperado a cidadania. Militares vítimas do regime, que haviam sido demitidos, também foram beneficiados.
Mas, uma transição de regime coordenada por militares “se revela não apenas nessa fúria autoritária que ainda ressoa nos quarteis, mas também nas elevadas estatísticas de letalidade e outras violências cometidas por agentes da segurança pública ainda regidos por estatutos militares”, afirma Pedro da Costa.
O domínio da transição é mostrado, para Mário Albuquerque, como um dos traços das classes dominantes, que se antecipam às mudanças que se apontam no horizonte e que, ao perceberem o que pode estar por vir, contra essa passagem para o novo, como foi o caso da condução da redemocratização pelos militares, segundo ele.
A anistia, vista por outro ângulo, foi ampla o suficiente para liberar militares de punições pelas práticas de tortura e de assassinatos. A impunidade das violações de direitos e da dignidade germinaram novos ataques à democracia, como o caso de 2022 e do 8 de janeiro, quando foram atacadas as sedes dos Três Poderes, em Brasília.
“A falta de punição, as graves violações de direitos humanos ocorridos no Brasil durante a ditadura estão na base disso, porque o Brasil é o único país da América Latina que não enfrentou essa questão. O Chile já enfrentou, a Argentina, o Uruguai. Mas o Brasil, não”, examina Mário Albuquerque.
Mário destaca também a dificuldade de corrigir esses erros do passado. “A gente não tem a cultura de enfrentar de frente essa memória, de se ver no espelho. Nossa coisa de jogar para debaixo do tapete, jogar para diante. Tipo assim, ‘não vamos viver do passado’. Assim a gente vai acumulando muitas faturas e elas de repente nos assustam”, reflete.
“Além da necessária punição daqueles que tramaram contra as instituições democráticas, é preciso uma revisão profunda do papel dos militares no Brasil, algo que não ocorreu na redemocratização”, avalia Pedro da Costa.
Ataques contra a democracia ocorrem em um novo momento do País
Instituições que salvaguardam o regime democrático se mostram mais sólidas diante dos acontecimentos recentes, um contraste com os anos 1960.
Para Mário, que é também ex-presidente da Comissão de Anistia Wanda Sidou, do Ceará, o Brasil ainda está “vivendo no jardim da infância da democracia. Nenhum brasileiro está longe ou está fora disso porque nós temos formação autoritária”.
O professor Kleiton de Moraes considera que, após esses atentados contra o sistema democrático, o regime “sai fortalecido” porque após as tentativas de golpe e ataques, especialmente do 8 de janeiro, ele relembra, contou com a presença maciça do Congresso Nacional, dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo na defesa do sistema político.
“Pela primeira vez nós temos instituições sólidas fortes, que foram também golpeadas pelos espelhos golpistas, mas não foram nocauteadas. Isso é muito esperançoso”, salienta Mário Albuquerque.