Há 60 anos ocorria o Comício da Central, último ato público de Jango antes do golpe

O Comício da Central surgiu com o intuito de apoiar a decisão tomada pelo governo de João Goulart, o Jango, de levar à frente as chamadas "Reformas de Base".

20:52 | Mar. 12, 2024

Por: Luíza Vieira
60 anos do Comício na Central do Brasil: Último ato popular de Jango antes da Ditadura (foto: Reprodução/ Senado Federal )

Intitulado golpe civil-militar de 1964, a articulação golpista que ocorreu entre 31 de março e 9 de abril deu início à tomada de poder, subvertendo a ordem em vigor no Brasil e abrindo caminho para a instalação da ditadura militar no país, regime que se estendeu até 1985.

No entanto, antes disso, foi realizado, no dia 13 de março daquele ano, o Comício na Central, ou Comício das Reformas, com o intuito de apoiar a decisão tomada pelo governo de João Goulart, o Jango, de levar à frente as nomeadas “Reformas de Base”.

Tais alterações incluíam as reformas agrária, urbana, educacional, tributária e eleitoral. Além disso, o governo propunha a legalização do Partido Comunista e o direito ao voto para analfabetos, cabos e soldados.

O comício reuniu cerca de 300 mil pessoas, dentre trabalhadores, camponeses, representantes de partidos políticos, estudantes, servidores públicos, soldados e sargentos.

Em seu discurso, Jango anunciou a encampação das refinarias privadas de petróleo e a desapropriação, para fins de reforma agrária, das terras às margens de rodovias, ferrovias e açudes federais. O então presidente afirmou na ocasião que, em até 60 dias, as terras começariam a ser divididas, “com a colaboração patriótica e técnica das Forças Armadas”.

Na ocasião, o líder brasileiro também anunciou que enviaria ao Congresso uma mensagem propondo as reformas universitária e eleitoral, que ampliava o direito ao voto de soldados e analfabetos.

Em um cenário político radicalizado, Jango rebateu a oposição, a imprensa e os empresários que se mostravam contrários às reformas, que o acusavam de atropelar a Constituição e de arquitetar um golpe de Estado.

“A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobras; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício”.

O POVO+ lança filme "Castello, o ditador"

No próximo dia 18 de março, O POVO+ lança o documentário "Castello, o ditador", que relembra o golpe militar que em 2024 completa 60 anos. A produção volta a memória da ditadura à partir de Humberto de Alencar Castello Branco, cearense e primeiro ditador do regime de exceção que duraria 21 anos após a queda de Jango.

19 de março: classe média reage contra Jango

Seis dias depois do Comício de Jango, a classe média, que incluía setores da Igreja Católica e associações femininas conservadoras, organizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. O ato reuniu os segmentos da classe média que temiam o “perigo comunista” e favoráveis à deposição do presidente da República.

O primeiro desses atos ocorreu no dia 19 de março, em São Paulo, no dia de São José, padroeiro da família. O principal articulador foi o deputado Antonio Silva da Cunha Bueno, apoiado pelo governador Adhemar de Barros.

A segunda Marcha da Família, organizada para o dia 2 de abril no Rio de Janeiro, ocorreu no dia seguinte à deposição de Jango e foi nomeada pelos jornais conservadores de “Marcha da Vitória”.

29 de março: Maioria dos brasileiros apoiou a reforma agrária

Uma pesquisa de opinião realizada pelo Ibope em oito capitais, entre os dias 9 e 26 de março de 1964, apontou que 72% dos brasileiros acreditavam que a reforma agrária no país era necessária. No entanto, para que se concretizasse, era preciso alterar a Constituição, que determinava indenização prévia, em dinheiro, aos donos de terras desapropriadas. A gestão de Goulart propunha o pagamento com títulos públicos a longo prazo, como vigorava em muitos países.

A luta política no início de 1964, majoritariamente, girou em torno dessa discussão. Os latifundiários e seus aliados alegavam que a reforma feria direitos adquiridos, tendo inspiração comunista. O líder das Ligas Camponesas, o deputado Francisco Julião, declarava: “Reforma agrária, na lei ou na marra”. Ironicamente, em 1965, o Estatuto da Terra anunciado pela ditadura militar previa a indenização com títulos de longo prazo nos caso das grandes desapropriações.

29 de março: Revolta dos Marinheiros

Cerca de dois mil marinheiros se reuniram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro para comemorar o segundo aniversário da fundação da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. A ação contou com a participação de sindicalistas, líderes estudantis, de Leonel Brizola, ex-governador do Rio de Janeiro, e de João Cândido, marinheiro líder da Revolta da Chibata de 1910.

A Marinha considerava a entidade ilegal.

O ministro da Marinha, Silvio Mota, mandou um contingente de fuzileiros para prender os marujos reunidos na sede do sindicato, no entanto, os fuzileiros aderiram à manifestação. O movimento só foi encerrado quando tropas do Exército cercaram o local e prenderam os rebelados.

Em seguida, Jango substituiu o ministro e mandou libertar os marinheiros presos. A revolta e a posterior anistia foram recebidas pela cúpula da Marinha como quebras da disciplina e da hierarquia.

De acordo com o professor e historiador Airton de Freitas, a conduta de Goulart fortaleceu os setores golpistas das Forças Armadas e colaborou para o isolamento de Jango.

“Quando acontece essa revolta dos marinheiros e o João Goulart não pune esses marinheiros, isso leva vários grupos militares, até então hesitantes, a apoiar o golpe na noite de 31 de março a 1° de abril”, explica.

30 de março: m discurso, Jango prevê Golpe de Estado

Durante discurso em um ato promovido pela Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, no Rio de Janeiro, João Goulart defendeu seu governo e as reformas de base. Aliados de Jango o aconselharam a não comparecer ao evento devido à radicalização da crise nas Forças Armadas, no entanto, o presidente optou por estar presente no ato.

Com um discurso improvisado, Jango denunciou o “clima de intrigas e envenenamento” que grupos poderosos tentaram criar. Na ocasião, o líder defendeu as Reformas de Base, interligando-as à doutrina social da igreja católica, assim como fez durante o Comício na Central e garantiu o estrito cumprimento da Constituição.

Jango também alertou para a manipulação dos “grupos de pressão que hoje controlam facções políticas, agências de publicidade e órgãos de cúpula das classes empresariais”, em uma clara alusão a entidades como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad).

Ao fim do discurso, Jango declarou: “O presidente não vacilará um instante sequer na execução de todas as leis e todos os decretos”.

Esta foi a última aparição pública do presidente constitucional, que seria deposto 48 horas depois.

Véspera do golpe

Outra pesquisa feita pelo Ibope, realizada às vésperas do golpe de Estado, mostrou que Jango contava com forte apoio da população ao ser deposto. Uma das apurações apontou que 15% dos cidadãos consideravam o governo ótimo; 30%, bom e 24% regular. Para 16% dos entrevistados, a gestão de Goulart era ruim ou péssima.

Outra pesquisa feita em oito capitais, entre os dias 9 e 26 de março, indicou que 49,8% dos que responderam a pesquisa admitiam votar em Jango caso a Constituição fosse modificada e ele se candidatasse à reeleição.

O Ibope revelou que 59% dos entrevistados eram a favor das Reformas de Base anunciadas por Jango no comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março.

31 de março a 2 de abril: golpe militar depõe Governo

Na noite do dia 31 de março, o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4° Divisão de Infantaria, localizada em Juiz de Fora (MG), enviou sua tropa em direção ao Rio de Janeiro, precipitando o golpe que vinha sendo articulado por generais, empresários e governadores de oposição a Jango.

A sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), onde se tentava articular a resistência ao golpe, foi incendiada com a conivência da polícia do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, da UDN. Tropas reprimiram manifestações em defesa do governo no Rio, em Porto Alegre e em outras capitais.

No dia 2 de abril, sem apoio de militares, Goulart deixou Brasília e foi para o Rio Grande do Sul. A oposição consumou o golpe no Congresso, declarando vaga a Presidência da República, ainda que Jango não tenha renunciado ao cargo nem saído do país.

O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu o lugar de Jango, subordinando-se a uma junta militar. A repressão foi generalizada e logo foram iniciadas as prisões em massa. Depois de dois dias, Jango exilou-se no Uruguai.

3 de abril: Estados Unidos ajuda golpistas

No dia 3 de abril, o governo dos Estados Unidos suspendeu o deslocamento de uma frota da Marinha norte-americana que se dirigia à região do porto de Santos, em São Paulo.

A Operação, intitulada “Brother Sam", previa a chegada da esquadra ao país em 11 de abril, para dar suporte aos golpistas em caso de reação por parte de militares e governadores legalistas. A intervenção foi considerada desnecessária depois que o presidente deposto, João Goulart, partiu para o exílio no Uruguai, em 2 de abril, desmobilizando qualquer resistência.

9 de abril: primeiro ato da ditadura rasga Constituição

Uma semana após derrubarem o governo, os militares decretaram o Ato Constitucional que revoga garantias democráticas da Constituição em vigor desde 1946.

O Ato, que seria o primeiro de uma série de decretos autoritários, instituiu o Comando Supremo da Revolução, composto pelos ministros militares que já vinham exercendo o poder: Costa e Silva, da Guerra (Exército); Augusto Rademaker, da Marinha; e Correia de Melo, da Aeronáutica. A imunidade parlamentar foi suspensa e o Comando Supremo cassou mandatos e suspendeu por dez anos os direitos políticos de cem cidadãos.

A primeira lista de cassações incluiu os ex-presidentes João Goulart e Jânio Quadros, os governadores Miguel Arraes e Seixas Dória, o deputado Leonel Brizola, o líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião, o líder comunista Luís Carlos Prestes, o ex-ministro Celso Furtado e 40 deputados federais, além de sindicalistas, intelectuais e oficiais das Forças Armadas.

Os atingidos que não foram presos passaram para a clandestinidade ou buscaram asilo em embaixadas. Seriam os primeiros exilados do regime militar

Consequências dosgGolpe de 1964

O professor e historiador Airton de Freitas explica que a ditadura militar apresenta características que já existiam no Brasil antes do golpe, se perpetuaram durante o regime e seguem existindo até os dias atuais.

“Vamos achar que o Brasil é apenas um reflexo do que o regime militar tinha, claro que o regime foi autoritário, corrupto, violento, censurou, perseguiu, calou opositores, não permitia divergência, mas isso são coisas que já existiam antes no Brasil. Sempre foi racista, machista, a diferença é que durante o regime militar esse autoritarismo exacerbou-se ainda mais”, pontuou.

Como exemplo disso, Airton menciona o atentado golpista de 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) entraram na Esplanada, invadiram e depredaram o Congresso Nacional.

“Nós temos um ex-presidente que tentou um golpe de Estado e vários segmentos da sociedade continuam endossando o que foi feito, achando que foi algo de menor importância. Ali é uma agressão à ordem legal democrática, então o autoritarismo ainda faz parte da sociedade brasileira”, detalha.

Lula cancela ato crítico ao golpe de 1964

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cancelou o ato crítico em alusão aos 60 anos do golpe de 1964. Organizado pelo Ministério dos Direitos Humanos, o movimento estava previsto para acontecer no dia 1° de abril, no entanto, foi suspenso por orientação do Planalto.

O petista afirmou que pretende pacificar as relações com militares após quatro anos de governo Jair Bolsonaro (PL).

A conduta de Lula é vista pelo professor e historiador Airton como um “esforço imenso de silenciamento”, uma vez que, ao final do regime militar, não houve um estudo aprofundado acerca do que aconteceu, haja vista que os militares que violaram os direitos humanos seguiram sem punição.

“O regime chegou ao fim em um grande acordo, numa grande conciliação de militares e grupos liberais. Mesmo uma parte da esquerda ou da oposição aceitou a forma como o regime chegou ao fim, então, salvo os espaços acadêmicos, não houve discussão sobre esse período nas escolas, nas ruas, nas igrejas, nos espaços de trabalho. Nas escolas você vê essa discussão em uma ou duas aulas de preparação para o Enem, essas coisas”, concluiu.