Conheça como foi o caso Maria da Penha e como a Justiça concluiu que o marido foi autor do tiro
Alvo de desinformação nas redes sociais, caso da cearense Maria da Penha transformou o combate à violência de gênero no Brasil. Crime ocorreu em 1983, mas o ex-marido, condenado, só foi preso em 2002, conseguiu ir para o regime semiaberto em 2004 e ganhou liberdade condicional em 2007
14:42 | Mar. 08, 2024
Em 2022, 18,6 milhões de mulheres brasileiras sofreram algum tipo de agressão, segundo dados divulgados este ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – destas, 50,9 mil foram agredidas diariamente. Na maioria dos casos, os agressores foram ex-companheiros (31,3%) ou o parceiro atual (26,7%). Desde 7 de agosto de 2006, as mulheres no Brasil contam com uma lei de proteção contra a violência doméstica, a Lei Maria da Penha.
Em 2024, a lei completa 18 anos, e dúvidas sobre o caso que deu origem ao dispositivo legal voltaram a movimentar a internet, sobretudo porque, nas redes sociais, vídeos com milhares de visualizações ganharam notoriedade ao afirmar que a Lei Maria da Penha foi fruto de uma farsa. Versões falsas do caso apontavam que a farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após ser baleada pelo marido nas costas enquanto dormia em 1983, teria sido alvo de assaltantes.
Segundo esses posts mentirosos, o marido, o colombiano naturalizado brasileiro Marco Antonio Heredia Viveros, teria sido incriminado por ela por ciúmes, após descobrir uma traição. Mas essa é a versão dele, contada em livro e que voltou a circular em 2022 quando um trecho do programa +1Podcast, da Jovem Pan News, fez ganhar força nas redes a mesma tese. Essa versão também aparece em um documentário lançado pelo Brasil Paralelo.
Conteúdos que defendiam a versão já tinham sido desmentidos em 2022 por Aos Fatos, Fato ou Fake, Estadão e UOL. Na época, o Instituto Maria da Penha (IMP) divulgou uma nota repudiando a divulgação de informações falsas a respeito do caso de violência doméstica. Mas, diante da viralização de novos conteúdos em 2023, o Comprova decidiu explicar o caso, não a partir das versões ditas em entrevistas, mas pelo processo criminal do ataque contra Maria da Penha, ocorrido em 1983.
Como foi a verificação
O primeiro passo foi pedir acesso à íntegra dos autos do processo instaurado em Fortaleza (CE) após Maria da Penha ser baleada. Isso porque, em boa parte dos vídeos que viralizaram nas redes sociais, os autores do conteúdo que defendiam a tese que a farmacêutica tinha sido baleada em um assalto – e não pelo marido – argumentavam que estas informações constavam no processo criminal.
Como notícias publicadas na imprensa não costumavam compartilhar o conteúdo dos autos, o Comprova iniciou a apuração entrando em contato com as partes interessadas no processo: o Ministério Público do Ceará, a defesa de Marco Antonio Heredia Viveros e o Instituto Maria da Penha. Mas, quem acabou dando acesso à íntegra do processo foi a 1ª Vara do Júri de Fortaleza, responsável pelo julgamento.
Os autos do processo possuem 1,7 mil páginas, incluindo o inquérito policial, os laudos periciais, depoimentos de testemunhas, a denúncia do Ministério Público, toda a fase de instrução do processo, as audiências e dois julgamentos pelo Tribunal do Júri (júri popular), além dos recursos da defesa e mandado de prisão contra Viveros.
A partir do acesso aos autos, concedido pelo juiz Antônio Edilberto Oliveira Lima, o Comprova passou a detalhar o que aconteceu desde o dia do crime até a prisão de Marco Antonio Heredia Viveros, passando pelos depoimentos cruciais para a polícia até o momento em que ele deixou de ser visto como vítima e passou a suspeito do crime.
Como foi o crime
O crime é descrito ainda no processo: Maria da Penha, então com 38 anos de idade, havia sido baleada nas costas enquanto dormia, na própria casa, no início da manhã de 29 de maio de 1983. O marido, Viveros, com 36, foi baleado no ombro direito. Na casa, dormiam o casal, as três filhas — de 6, 4 e 2 anos — e duas empregadas domésticas, Francisca Olindina e Rita. Elas duas ocupavam um quarto separado da casa por um portão de ferro, próximo à área de serviço.
A tese inicial da Polícia Civil do Ceará era a mesma apresentada por Viveros: de que a casa da família tinha sido arrombada e que o casal era vítima do crime. Segundo Viveros, ele acordou por volta das 5 horas ao ouvir o cachorro latir e, ao se levantar, também notou ruídos vindos do teto da casa. Por isso, decidiu voltar ao quarto, pegar um revólver que estava perto da cama e fazer uma vistoria pela casa. Viveros contou que o cachorro latiu novamente e, neste momento, ele viu uma sombra vindo de uma abertura do teto e, quando ia atirar, ouviu um disparo vindo do interior da casa.
Este seria, segundo ele, o tiro que atingiu Maria da Penha na região dorsal, ainda dormindo, disparado por um dos suspeitos. Viveros também afirmou que, neste momento, foi agredido de surpresa, pelas costas, por alguém que colocou uma corda em seu pescoço. À medida que ele lutava contra a pessoa, disse, um assaltante tentou lhe tomar a arma, que disparou e o atingiu na altura do ombro direito.
A versão que viralizou nas redes sociais se encerra aí e se restringe à história apresentada por Viveros e que, inicialmente, foi tomada por verdade pela polícia. Os vídeos mentirosos virais argumentam que a Lei Maria da Penha é, na verdade, baseada em uma fraude, já que Viveros seria uma vítima, e não o autor do disparo que deixou a esposa paraplégica. O que não aparece nestes conteúdos, contudo, são os novos rumos tomados pela investigação após as testemunhas começarem a ser ouvidas.
Leitura dos depoimentos
No Comprova, a investigação foi feita por jornalistas do Estadão, Jornal Plural e Grupo Sinos. A decisão tomada pela equipe foi de que o inquérito, os depoimentos, os relatórios de perícia e os julgamentos seriam lidos por todos, para que as versões pudessem ser analisadas cuidadosamente, por mais de um olhar.
A investigação seguiu ouvindo os depoimentos de Viveros, de Maria da Penha, e também contou com os exames periciais feitos no casal. Os exames mostraram consequências severas para ela, mas ferimentos leves para ele, que tinha sido atingido por um tiro no ombro. Maria da Penha prestou mais de um depoimento à polícia, em que disse que não tinha percebido de imediato que havia sido baleada, mesmo após ouvir o barulho do disparo. Contou que pediu socorro à empregada, Rita. Ela relatou que era casada com Viveros havia cinco anos, mas que, por conta do tratamento grosseiro dele com ela e todas as pessoas da casa, havia decidido se separar dele. Ela também tinha descoberto que ele tinha uma amante no mesmo dia em que decidiu sair de casa e ir morar com a mãe.
Por fim, Maria da Penha contou que soube apenas por uma das empregadas da casa, um mês após o crime, que o marido tinha uma espingarda — mesmo tipo de arma usada para atingi-la pelas costas — e que estranhou que os supostos assaltantes não tivessem roubado dinheiro e joias que estavam no quarto do casal, já que ela, baleada, não oferecia nenhum obstáculo ao roubo.
Outra decisão tomada pela reportagem foi ler os depoimentos das testemunhas, para entender se algo havia ficado de fora. Para isso, o Comprova montou uma espécie de enciclopédia do caso, apontando quem eram os “personagens” importantes na história: isso inclui o casal, a polícia, os órgão de justiça, as testemunhas de acusação e de defesa e outras pessoas citadas nos autos — ouvidas ou não no processo.
Fragilidades na versão
À medida que a polícia ouviu os depoimentos dos vizinhos, foram surgindo buracos na história contada por Viveros: a rua onde ficava a casa da família não era das mais largas, como mostram imagens que constam nos autos e, no momento dos disparos, vários vizinhos correram para tentar ver o que havia acontecido. No entanto, nenhum deles disse ter visto uma fuga — nem mesmo um rapaz que trabalhava como vigia de um imóvel em construção na frente da casa, ou outros dois vizinhos que subiram num muro para um terreno baldio ao lado da casa onde, disseram, não havia onde se esconder.
O intervalo entre os tiros também foi motivo de desconfiança. No depoimento à polícia, Viveros disse que ouviu o tiro na esposa e, logo em seguida, numa luta corporal, acabou atingido. Os vizinhos, contudo, falam de um intervalo de dois a três minutos entre os disparos, o que, segundo o delegado, era tempo suficiente para que Viveros fingisse uma luta corporal e disparasse um tiro nele mesmo.
Depoimentos-chave
Os depoimentos-chave, contudo, foram os das empregadas da casa, Francisca Olindina e Rita: elas contaram à polícia sobre a rotina da casa e o comportamento grosseiro de Viveros, tanto com a esposa quanto com as funcionárias e as próprias filhas. Disseram que ele costumava aplicar castigos físicos às meninas, que, frequentemente, precisavam ser tratadas com pomadas, dada a força dos golpes.
Também afirmaram categoricamente que Viveros tinha uma espingarda – arma que ele não havia mencionado à polícia em seu depoimento e que, depois, negou ter, tanto em um segundo depoimento quanto em duas acareações. Ainda assim, as testemunhas mantiveram seus depoimentos. Francisca disse ter visto a espingarda dentro de um guarda-roupa cerca de 30 dias antes do crime.
No depoimento prestado ao delegado em fevereiro, Rita confirmou a existência da espingarda e disse ter observado a arma sendo limpa por Viveros. Rita afirmou que o patrão “tratava mal” a esposa, as filhas e as empregadas e, assim como Francisca, declarou que, após o suposto arrombamento, as joias de Maria da Penha e de Viveros, e as chaves do carro dele, estavam em locais de fácil acesso.
Foi a partir destes depoimentos que o delegado do caso, José Nival Freire da Silva, começou a desconfiar de Viveros, pediu ajuda à Polícia federal para investigá-lo na Colômbia e passou a tratá-lo oficialmente como suspeito do crime. Mesmo que ninguém tenha de fato testemunhado o momento do disparo.
No dia 6 de julho de 1984, o delegado José Nival Freire da Silva concluiu o inquérito policial, indiciando Viveros pelo crime de tentativa de homicídio qualificado contra Maria da Penha. O inquérito foi enviado ao Ministério Público do Ceará, que, por sua vez, denunciou Viveros à Justiça em 28 de setembro de 1984.
Antes da primeira decisão da Justiça, a defesa de Viveros alegou que a denúncia e o próprio inquérito tinham “cunho meramente indiciário, com presunções, ilações, conjecturas”, sem qualquer testemunha que atestasse que o crime tivesse sido cometido por ele. Também alegou que o relatório da polícia não levava em conta a perícia feita no local do crime e, por isso, pedia que a denúncia fosse julgada improcedente.
Não foi o que entendeu a então juíza titular da 1ª Vara do Júri de Fortaleza, Maria Odele de Paula Pessoa. No dia 31 de outubro de 1986, ela decidiu aceitar a denúncia do Ministério Público e expedir uma sentença de pronúncia, o que significa que vira elementos suficientes para que o réu fosse julgado pelo Tribunal do Júri.
Os julgamentos
Viveros foi julgado duas vezes – e condenado duas vezes, em 1991 e 1996. Em 1991, ele foi condenado a 10 anos de prisão, mas conseguiu aguardar recurso em liberdade e a defesa conseguiu anular este primeiro julgamento argumentando que houve um erro na formulação das perguntas aos jurados.
O segundo julgamento só aconteceu em 1996 e ele foi novamente condenado, desta vez a 10 anos e seis meses de prisão, mas saiu livre do tribunal devido a mais um recurso da defesa, que alegou que o julgamento tinha ido de encontro às provas dos autos. Um desembargador negou novo julgamento, mas reduziu a pena para oito anos e seis meses.
Viveros só foi preso, de fato, em 2002, mas conseguiu ir para o regime semiaberto em 2004 e ganhou liberdade condicional em 2007.
Caso relatado por Clarissa Pacheco (Estadão)