Área de litígio: Município do Ceará pode perder até 66% do território para o Piauí
Do dia para a noite, Poranga pode quase desaparecer do mapa do Ceará, passando a existir sob administração do vizinho Piauí caso o estado vença a queda de braço jurídica pelas terrasNo começo, antes de o assunto campear solto pelo mundo, o bibliotecário Antônio Ribeiro, 70, ainda não sabia sequer o que cargas d’água era “litígio”. Curioso, foi caçar a palavra no dicionário numa sala da escola onde trabalha, no distrito de Cachoeira Grande, em Poranga (a mais de 300 km de Fortaleza), um dos 13 municípios da Serra da Ibiapaba cujo território é parcialmente reivindicado pelo Piauí.
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Sem dificuldade e com a vista boa, pescou o vocábulo entre os tantos. “É uma questão que nunca foi resolvida. Foi aí que entendi o que era a história”, conta à reportagem do O POVO enquanto aponta com o indicador no mapa do Ceará uma região destacada da restante: é a zona contestada pelo estado vizinho, que pleiteia a fatia larga de 66% da área de Poranga, ou seja, quase dois terços da cidade, incluindo-se a sua Cachoeira, distante apenas 5 km da divisa.
Hoje, Antônio, que já exerceu a função de professor no mesmo colégio, fala de cátedra sobre o tema, em relação ao qual se aprofundou de lá para cá. Como aluno aplicado que sempre foi, conhece não apenas a acepção dicionarizada do termo, mas está a par dos meandros jurídicos e das filigranas processuais através das quais a ação se arrasta no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2011, ano em que o Piauí entrou com essa demanda.
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“Está com a Cármen Lúcia (ministra da corte), e o Exército está fazendo o mapeamento geográfico. Demora muito, a justiça brasileira é lenta. Quando resolverem, talvez eu não seja nem mais vivo”, diverte-se.
Mas o educador há de estar. Daí que, desde já, permaneça com posição firmada na desavença secular em torno da qual os dois estados duelam na Justiça pelas terras da Serra Grande: “Por nós, ficamos no Ceará mesmo”. Antônio pondera, todavia: “Mas tem quem prefira o Piauí”.
Embora não seja um desses simpatizantes, ele mesmo não esconde que mantém com o chão piauiense uma relação mais amiudada do que com o cearense. Não é por afeição ou querença, logo atalha, mas por necessidade.
Faz tempo, por exemplo, não anda pela sede de Poranga, quase nunca visitada nos últimos cinco anos por causa das condições da estrada, uma via carroçal extensa cujo asfalto existe apenas nas promessas de políticos em ano eleitoral ou nas tabelas de Brasília, segundo relata.
Filho do Ceará, tampouco vê precisão de ir a outras localidades do lado de cá do limite estadual, resolvendo a vida do lado de lá da linha que separa os estados, onde encontra o de que tem carência para as urgências do dia a dia.
“Pedro II”, ele explica, “é o polo da região. É onde tem mais serviço de todo tipo, bancário etc. Na medicina, por exemplo, 80% (da procura dos moradores) é no Piauí, porque os hospitais são melhores. Começa em Pedro II e termina em Teresina”.
Se algum familiar é acometido por doença de quadro mais gravoso, diz, aconselha “de imediato que vá pro Piauí, porque até chegar a Poranga é um sofrimento e corre o risco de não estar mais vivo”.
Não é força de expressão, ele se avexa em aclarar. Não tem tanto tempo assim, um conhecido de sítio feriu-se manejando um machado no corte de lenha. Foi uma sangria danada, lembra. Na dúvida entre socorrer-se em Pedro II ou em Poranga, ficou com a última, onde passou maus bocados durante o atendimento hospitalar.
A despeito de estar ciente desses aperreios e de dificuldades de toda ordem, porém, Antônio não deseja mudar de estado: “Apesar das vantagens de Pedro II e do Piauí, prefiro ficar no Ceará”. Ele não é exceção.
Naquele pedaço de Poranga mais chegado à divisa, quando tem de comprar o arroz e o feijão, o cuscuz e a manteiga, a carne e o leite, o óleo e o sabão, quase ninguém se aventura de carro, moto ou bicicleta pela estradinha acidentada até a sede. Para onde vão, então?
“Tem que todo mundo ir pro Piauí”, responde a poranguense Cláudia Ribeiro, acrescentando que “ninguém vai deixar de comprar em Pedro II pra ir pra Poranga”, ainda que o distrito se ache num ponto equidistante. De acordo com ela, “tudo é resolvido lá”, o que acaba fazendo de Cachoeira “bem dizer parte do Piauí”.
“Muita gente que era daqui foi embora pra lá. Pedro II é uma cidade boa, grande, tudo que a gente procura, encontra. E o acesso é melhor. Em cinco minutos, já chega na divisa e depois em Pedro II”, estima, onde a via é de fato pavimentada com asfalto, demarcando a divisão de domínios entre Ceará e Piauí.
Contudo, se lhe perguntam se está na torcida por um ou outro em meio ao impasse territorial, Cláudia sai-se ligeiro: “Tem quem quer que continue Ceará, outros que seja Piauí. Por mim, se fosse Ceará seria bom. No fundo, acho que a maioria prefere continuar morando no território cearense”.
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