O dia em que Quixeramobim proclamou a república, 200 anos atrás

Quase seis meses antes de estourar a Confederação de 1824, vilas do Ceará já se articulavam contra as decisões do imperador

No dia 9 de janeiro de 1824, a república foi proclamada em Quixeramobim. A atitude, que completa 200 anos nesta terça-feira, 9, foi uma reação ao imperador dom Pedro I, que havia fechado a Assembleia Constituinte que tinha sido convocada para que deputados eleitos pelas províncias construíssem o texto de uma Constituição para o nascente império brasileiro. Era um ato precursor do que viria a ser a Confederação do Equador, movimento idealista e trágico, de contornos heróicos, que marcou a história do que hoje é o Nordeste.

Naquele dia 200 anos atrás, a Câmara da vila de Campo Maior, atual município de Quixeramobim (a 204 quilômetros de Fortaleza), declarou destituído o imperador Pedro I e a dinastia de Bragança e decidiu instaurar no Brasil uma "República estável e liberal".

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"Acordaram que em vista à horrorosa perfídia de D. Pedro I, imperador do Brasil, banindo a força armada nas cortes convocadas no Rio de Janeiro contra mil protestos firmados pela sua própria mão, ele deixava a sua dinastia de ser o supremo chefe da nação e se novas cortes convocadas em lugar tudo assim o aprovarem. Que presentemente vão regulando o povo as leis antigas por falta de códice legítimo firmado pela pluralidade dos deputados da nação em novas cortes", diz a ata da sessão.

"(...) cessando a dinastia de Bragança de ser o 1º chefe da nação, protestam firmar uma república estável e liberal que defenda seus direitos com exclusão de outra qualquer família", acrescenta o documento.

O movimento foi liderado pelo padre Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e Mello, atural de Riacho dos Guimarães, atual Groaíras, que passaria a adotar a alcunha Padre Mororó.

O comando das armas deveria ser entregue a José Pereira Filgueiras, que retornbara havia pouco, do Maranhão, ao lado de Tristão Gonçalves, futuramente presidente do Ceará confederado.

A Câmara da atual Quixeramobim enviou ainda uma comissão a outras vilas sertanejas para pronunciamentos na mesma linha e a adesão à liderança de Filgueiras e Tristão. 

Repercussões do ato de Quixeramobim

A resposta das outras vilas ao movimento de Campo Maior foi positiva: Crato, Aracati, Icó, entre outras, recusam-se a jurar a Constituição outorgada por dom Pedro I e enviam protestos ao governo cearense pelas atitudes do monarca. Aracati, no entanto, em vez de uma república independente propõe uma espécie de governo regente em que cada província tenha independência, mas ainda vinculadas ao imperador.

"Era uma ideia de que estamos aqui, podemos nos autogovernar, mas que a gente ainda esteja sob a autoridade de dom Pedro, mas com uma sede em Recife, nós podemos nos autogovernar", explica Weber Porfírio, membro do Grupo Sociedade de Estudos do Brasil Oitocentista da Universidade Federal do Ceará (Sebo/UFC).

Porfírio destaca que, na proposta dos aracatiense, são citados Ceará, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, praticamente todas as províncias citadas no que seria a Confederação do Equador.

"Dá um indício que essa proposta da Confederação teria sido um pouco influenciada por esse indicativo feito pela vila de Aracati em fevereiro de 1824, porque esse ofício é enviado para a junta de governo e posteriormente é enviada para Pernambuco e, curiosamente, depois é proclamada a Confederação do Equador dentro dos moldes que nós conhecemos”, apontou ainda o historiador. 

Causa da revolta 

A sublevação de Quixeramobim antecedeu em quase seis meses o início oficial da Confederação do Equador. Em 2 de julho de 1824, começou em Pernambuco o movimento que se espalhou pelas províncias do norte, atual Nordeste. Houve adesões de Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e vilas do Piauí.

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Os revoltosos sonhavam com uma república federativa longe das amarras do imperador Dom Pedro I. Aquelas ideias já encontravam forte apoio em terras cearenses, especialmente em Campo Maior/Quixeramobim.

O motivo da insatisfação remonta a 1823. Desde 3 de maio daquele ano, funcionava a Assembleia Constituinte, no Rio de Janeiro. Ao longo dos trabalhos, evidenciaram-se diferenças de opinião entre os constituintes e dom Pedro, em particular sobre os poderes que o imperador teria.

Em 12 de novembro de 1823, no que ficou conhecida como "noite da agonia", o imperador mandou o Exército invadir o plenário e encerrar a Constituinte. Muitos dos parlamentares foram presos ou exilados. A ação foi vista como afronta, principalmente pelas vilas mais engajadas politicamente, que eram, de certa maneira, mais autônomas desde a Revolução Liberal do Porto, em 1820.

Aquele movimento lusitano teve impacto decisivo na história do Brasil. Numa reação ao absolutismo monárquico, foi estabelecida uma constituição para limitar os poderes do rei. Além disso, foi exigido o retorno da família real, que se encontrava no Brasil desde 1808.

Uma das consequências foi que as capitanias viraram províncias, que poderiam ser governadas por juntas de governo, escolhidas pela população, que responderiam diretamente a Lisboa. Com a independência em 1822, havia a expectativa de que, com a eleição dos constituintes, as elites políticas do norte conseguissem ver algumas de suas demandas atendidas. As principais queixas eram por pagar altos impostos e receber pouca atenção em comparação com o Rio de Janeiro, onde estava a corte.

Padre Mororó

Figura central na movimentação em Quixeramobim e pelo Ceará era o padre Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque Melo, posteriormente Mororó. Tido desde cedo como um jovem curioso e "cheio de ideias", há textos que apontam que ele chegou a estudar no mesmo seminário que outro nome famoso revolucionário: Frei Caneca.

Padre Mororó
Padre Mororó Crédito: Academia Cearense de Letras/divulgação

O pernambucano Frei Caneca já havia sido personagem na Revolução Pernambucana de 1817, como voluntário das tropas revoltosas contra o exército real da Bahia. Permaneceu preso na cadeia de Salvador até 1821, quando foi solto em virtude da Revolução do Porto. Até mesmo o período na cadeia teria sido usado para afiar suas palavras contra a família real em favor das ideias republicanas.

Assim que saiu da prisão, voltou ao cenário político. Foi fundador e editor do jornal Typhis Pernambucano, onde fez severas críticas ao governo de dom Pedro. É considerado um dos líderes maiores da Confederação do Equador.

Se em 1817 Padre Mororó não comprou as ideias do colega de batina, em 1824, a história aponta em outra direção. Cumpriu a profecia que escutou do fundador Azeredo Coutinho, que o conhecera de perto ao requisitá-lo como bom copista: "Este moço há de perder-se na primeira revolução que houver no Brasil!".

Nos moldes do colega, Mororó fundou o Diário do Governo do Ceará para falar dos ideiais revolucionários. Parecidos na vida, os dois encontraram a morte da mesma forma com tiros de fuzis quando a revolução foi findada pelas forças do imperador.

República proclamada 7 anos antes em Crato

O Ceará teve uma experiência de república proclamada antes de Quixeramobim. Foi durante a Revolução Pernambucana de 1817. Foi em Crato, a 502 km de Fortaleza. O movimento, assim como em 1824, foi liderado no Ceará pela influente família Alencar.

O diácono José Martiniano de Alencar, pai do romancista José de Alencar e, na época, estudante de retórica no Seminário de Olinda, era o emissário do governo revolucionário de Pernambuco. Em 3 de maio de 1817, depois da missa, subiu de batina ao púlpito da Matriz de Nossa Senhora da Penha e proclamou a independência e a república. O movimento durou oito dias. Martiniano e o irmão, Tristão Gonçalves, foram presos. Este último viria a ser o principal líder da Confederação do Equador, quando foi morto.

Consequências da República de Quixeramobim

A república proclamada em Quixeramobim, como se sabe, não vingou. Em 25 de março, dom Pedro I outorgou a primeira Constituição brasileira, escrita conforme a vontade dele. Era um texto centralizador e que tirava poderes das províncias. Vigirou até o fim do império e foi a mais duradoura Constitui.ção brasileira até hoje.

Demorariam 65 anos até a república ser proclamada de fato no Brasil, em 15 de novembro de 1889, pelo marechal Deodoro da Fonseca, que viria a ser o primeiro presidente.

Isso não significa que a proclamação em Campo Maior/Quixermobim foram palavras ao vento, fanfarronice sem consequência. Foi um dos primeiros atos de uma reação em cadeia que iria desembocar na Confederação do Equador, em julho.

As consequências foram brutais. Após repressão sangrenta e dias sob bombardeio, Recife se rendeu em setembro de 1824. Vilas cearenses resistiram e foram incendiadas e saqueadas. Fortaleza se rendeu em 18 de outubro de 1824, quando o escocês lorde Thomas Cochrane, mercenário a serviço da Coroa, atracou em Fortaleza com a nau Pedro I, após reprimir a rebelião em Pernambuco.

Tristão Gonçalves foi morto no fim de outubro de 1824, às margens do rio Jaguaribe. Padre Mororó e outros líderes, Azevedo Bolão, Feliciano Carapinima, Francisco Ibiapina e Pessoa Anta, foram executados no antigo Campo da Pólvora, atual Passeio Público. O local por isso é chamado Praça dos Mártires, em homenagem aos revoltosos.

Documentos históricos contam a história da Confederação

O Arquivo Público do Ceará mantém algumas relíquias da Confederação do Equador. Lá estão guardados três livros com as correspondências datadas do período de 1823 a 1825. Não se sabe ao certo como os documentos sobreviveram ao tempo e ao movimento de apagamento da revolução. Os registros foram transcritos na íntegra e estão disponíveis para consulta.

Os originais, aos quais O POVO teve acesso, apresentam elevado grau de degradação, tanto do tempo, os mais de 200 anos, à falta de conservação até o momento em que foram encontrados (existem partes coladas com fita adesiva), bem como da própria toxicidade da tinta da caneta.

Até a força com que os autores escreveram, há 200 anos, influenciou para que as páginas estivessem buracos ou desbotadas.

Veja as fotos dos documentos

Nas páginas antigas, é possível ver despachos de Tristão Gonçalves como presidente da província do Ceará e correspondências que ele trocou com presidências de outras províncias, inclusive Paes Andrade, de Pernambuco. Os textos também recontam os trâmites desde a prisão até a execução dos revolucionários.

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