Ônibus a preços inflados: presidente do FNDE mente sobre leilão e pastores
17:38 | Abr. 07, 2022
Documentos internos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional (FNDE) desmentem a versão apresentada pelo presidente do órgão, Marcelo Ponte, à Comissão de Educação no Senado, nesta quinta-feira, 7, sobre o risco de sobrepreço de R$ 732 milhões na licitação dos ônibus escolares. Ponte disse aos senadores que o pregão seguiu todas as recomendações da Controladoria-Geral da União (CGU) e tentou negar que o governo recuou e reduziu as cotações dos veículos apenas na véspera do leilão, após o caso ser revelado pelo Estadão.
"Nós seguimos todas as recomendações da CGU e seguimos acatando as determinações de controle, em especial o TCU (Tribunal de Contas da União) e a CGU, assegurando desta forma a lisura de todos os nossos processos", disse. "Me reuni diversas vezes com as áreas responsáveis pela licitação e tive também a segurança técnica e legal que o processo percorreu todas as fases previstas na legislação."
Como o Estadão tem mostrado em uma série de reportagens publicadas desde sábado, 2, o FNDE atropelou as orientações dos órgãos de controle e da própria área técnica, que apontaram risco de sobrepreço nos valores dos ônibus que o governo aceita pagar. Marcelo Ponte disse que "a imprensa divulgou relatório um mês após todas as providências terem sido resolvidas, superadas pela nossa área técnica".
Os documentos internos do Fundo mostram o contrário. O valor inicial sugerido pela área técnica do FNDE para a aquisição dos coletivos era de R$ 1,3 bilhão. A equipe do diretor de Ações Educacionais do Fundo, Garigham Amarante - indicado pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto -, apresentou uma estimativa de preços de R$ 2,082 bilhões para o pregão.
Após alertas da CGU, os dirigentes mudaram a metodologia de cálculo, mas o cenário pouco se alterou. O valor máximo da licitação passou para R$ 2,045 bilhões e foi liberado por Marcelo Ponte em 18 de março.
O senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) questionou Marcelo Ponte sobre as alterações nos valores do leilão. "Por que esse valor voltou para R$ 2,045 bilhões no termo de referência? O sr. sabe informar?", questionou.
O presidente do FNDE alegou que o ajuste para reduzir os valores do pregão havia sido feito antes de o caso vir a público. "A republicação já foi com 1,5 bi também. A republicação já saiu com 1,5 bi", disse. "Salvo engano, 24 ou 25 de março, oito dias antes do pregão que ocorreu na terça-feira, 5."
O processo administrativo do próprio Fundo, no entanto, aponta que a alteração ocorreu apenas na véspera da licitação dos ônibus, em 4 de abril, após publicação de reportagem do Estadão. Marcelo Ponte foi confrontado sobre as datas também pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP) e silenciou após a fala do parlamentar.
"O preço foi reduzido dos R$ 2 bilhões que o senador Alessandro falou para R$ 1,5 bilhão. Sabe quando? Na véspera, da véspera, da véspera do pregão, após ter sido veiculado pela imprensa e após todas as recomendações não cumpridas da CGU", disse o Randolfe Rodrigues.
Por causa da mudança de última hora, o preço total para a aquisição dos veículos sofreu uma redução de R$ 510 milhões. Mesmo com as alterações, o TCU preferiu embargar o resultado do pregão. A decisão assinada pelo ministro Walton Alencar Rodrigues permitiu que a concorrência fosse realizada e as propostas apresentadas pelos fornecedores. A homologação dos valores, no entanto, só poderá ser feita após a avaliação da Corte de contas.
No fim da sessão, Marcelo Ponte entregou um despacho interno do FNDE ao presidente da Comissão da Educação para tentar justificar sua declaração sobre a definição do valor máximo do pregão em R$ 1,5 bilhão. O documento é datado de 14 de março. Ponte omitiu, no entanto, que após essa data FNDE estabeleceu R$ 2,045 bilhões como valor máximo do leilão, o que gerou a indicação de sobrepreço.
Audiência
Marcelo Ponte começou a falar à Comissão de Educação por volta das 10h desta quinta-feira com forte presença de senadores governistas. A audiência reuniu mais da metade da bancada do PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, no Senado, como Carlos Portinho (RJ), Eduardo Gomes (TO), Carlos Viana (MG), Wellington Fagundes (MT) e Marcos Rogério (RO).
O presidente do FNDE foi questionado sobre o relacionamento que mantinha com os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura. Marcelo Ponte disse que cumprimentava os pastores "normalmente, protocolarmente". Em 7 de agosto do ano passado, durante um encontro oficial do Ministério da Educação, o presidente do FNDE se dirigiu ao pastor Gilmar Santos como "grande amigo".
Em Salinópolis (PA), durante um atendimento do MEC a prefeitos, em julho do ano passado, Marcelo Ponte citou os religiosos. "Pastor Gilmar, mais uma vez juntos, muito obrigado pela presença. Pastor Arilton, que sempre organiza", disse o presidente do FNDE na ocasião.
Uma série de reportagens do Estadão mostrou, no mês passado, um esquema de intermediação de recursos operado no Ministério da Educação com cobrança de propina pelos religiosos ligados ao então ministro Milton Ribeiro, que precisou deixar o cargo. O ex-ministro relata ter alertado à CGU, em agosto, sobre "conversas estranhas" de Arilton Moura.
Aos senadores, Marcelo Ponte contou ter sido ouvido pela CGU sobre o caso. O presidente do FNDE disse acreditar "na conduta" de Milton Ribeiro. "Eu acredito que terceiros usaram o nome dele, meu, eventualmente, para se gabaritar, para fazer lobby sem a nossa autorização", afirmou. Questionado se houve liberação de recursos por lobby dos pastores, Ponte afirmou que "não". "Não houve. Inclusive, desses municípios não houve R$ 1 liberado." Reportagem do Estadão revelou, no entanto, que alguns dos municípios que recorreram aos pastores conseguiram receber, rapidamente, empenhos do orçamento.