Orçamento de busca ativa de crianças e adolescentes em situação de rua é o menor em 17 anos
O montante previsto é de R$ 309 mil, 58,1% menor do que o previsto em 2021 e 48,89% menor que o de 2020
11:58 | Dez. 16, 2021
O relógio da Praça do Ferreira, em Fortaleza, marca 17 horas. O comércio encerra a jornada diária e, no meio do fluxo cotidiano, está Marcela*, 10 anos, sentada no banco de madeira. Aquele é também o lugar onde a menina, que fez aniversário no dia anterior, dorme todas as noites. Ela é uma das crianças que vivem nas ruas da capital cearense desde os 7 anos.
Não se sabe quantas crianças e adolescentes como Marcela existem na cidade. O último censo foi realizado em 2015. Mas, de janeiro a setembro de 2021, o programa Cresça com seu Filho/Criança Feliz, voltado para a realização de visitas periódicas a famílias em situação de vulnerabilidade com crianças de até 3 anos, já cadastrou mais de 29 mil crianças. Há um aumento da procura dos serviços de assistência social oferecidos à população em situação de rua. No entanto, o orçamento proposto para cuidar das crianças vivendo nessa condição, em 2022, é o menor dos últimos 17 anos.
O montante previsto é de R$ 309 mil, 58,1% menor do que o previsto em 2021 e 48,89% menor que o de 2020. Os dados são da organização "Orçamento na Luta'', que analisou e disponibilizou o valor previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) desde 2015. O valor é para ser investido no programa Ponte de Encontro, voltado à busca ativa de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
O Ponte de Encontro foi aprovado pela Câmara Municipal de Fortaleza em 2019 e, a partir de 2020, foi instituído como Política Pública Municipal. Antes, ele já existia como programa da Fundação da Criança e Família Cidadã (Funci). Porém, como política pública, ele passou a existir em lei e se tornar permanente, independentemente da administração municipal.
Por nota, a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) respondeu que o Plano Plurianual (PPA) 2022-2025 fez os ajustes necessários na meta financeira, buscando maior racionalidade na utilização dos recursos públicos e prevendo, mesmo assim, aumento da meta física de atendimento (4.900 crianças e adolescentes), considerando o contexto social de pandemia e crise econômica.
"Desde 2019, a despesa com terceirização de pessoal da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) migrou para a Secretaria do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sepog). Essa mudança impactou na redução das despesas e, consequentemente, nas metas financeiras originalmente previstas no PPA 2018-2021", apresenta um trecho da nota.
De acordo com a pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza da Universidade Federal do Ceará, Alesandra de Araújo, o cumprimento de um orçamento depende de algumas variáveis que às vezes são invisíveis no período em que a Lei Orçamentária Anual é aprovada. "Às vezes, também não se cumpre um orçamento para tal pasta, para remanejar para outras rubricas", finaliza. Esses são os dois motivos mais comuns para não se cumprir um orçamento.
Porém, quando avaliados os valores per capita, é possível perceber que existe uma variação em relação ao número de pessoas atendidas. “Às vezes o valor vem caindo, mas a quantidade de pessoas caiu tanto, que o valor por pessoa acaba aumentando. Não é o caso desse programa”, explica Alesandra. O ápice do valor executado no orçamento por pessoa foi em 2014, quando eram destinados quase R$ 7 mil per capita. Em 2017, o valor diminuiu para menos de R$ 12. Já em 2019, ficou em torno de R$ 14 e, em 2020, o valor por pessoa, com dados até novembro, soma R$ 117. Que é um valor alto comparado a 2019, mas a 2016 e 2014, não.
Para gerir o orçamento de acordo com a necessidade da cidade, sobretudo depois da pandemia e do empobrecimento da população, ter um censo de crianças e adolescentes em situação de rua é fundamental. Enquanto Fortaleza não dimensiona esse número, Marcela segue vibrando por ter conseguido um cupcake doado para celebrar o aniversário, mas lamentando a noite que passou.
"Eu fechava os olhos e ouvia os cachorros 'auuuuuuuu', aí pedia pra parar, mas eles continuavam", compartilha com a vendedora de dindin, sentada ao seu lado. Ao perceber Marcela conversando com uma pessoa desconhecida, a madrasta, Ariana, de 25 anos, resolve intervir. Segundo a mulher, ela pensava ser o Conselho Tutelar, visto pelos responsáveis das crianças como agentes que podem levar seus filhos.
A rotina na rua
No meio da conversa, Marcela interrompe a fala para receber uma nota de dez reais de um senhor de cabelos brancos que passava apressadamente. "Ele é meu amigo, sempre que passa por aqui e me vê me dá dinheiro pra eu comprar comida. Eu conheço quase todo mundo por aqui", compartilha a menina.
Ela mora na praça com o pai, a madrasta, a tia e os quatro irmãos. Marcela ressalta que percebeu uma atenção maior, em relação à assistência. Ela tem feito as refeições, pela manhã no ponto próximo à Praça do Ferreira, onde toma banho e também almoça. Pela noite, alimenta-se "quando estoura" alguma coisa lá. Marina* é a irmã mais nova, com 3 anos. Os outros irmãos têm 12 e 8 anos.
Marcela estava estudando, mas parou recentemente porque a professora ficou doente. Não tem registro de nascimento, queimado em um incêndio na casa de uma parente. Marcela sabe ler e escrever. Os outros irmãos frequentam a escola, exceto a mais nova, que saiu da creche há pouco tempo.
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Os amigos dela são todos mais velhos do que ela, algumas de 10, 13 ou 14. Umas dormem por ali, outras em outras praças, mas Marcela dorme embaixo da Romana, famosa padaria localizada na praça. "Minha mãe (madrasta) ajeita o paninho pra gente dormir". A reportagem contou, pelo menos, 6 crianças na Praça. Desde 2018, a realização do censo vem sendo cobrada pelo Ministério Público Estadual. De acordo com a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), o levantamento está na fase final e deve ser entregue no final deste ano.
*Os nomes das crianças são fictícios para preservação da identidade
Esta reportagem é uma produção do Programa Sala de Redação, realizado pela Énois — Laboratório de Jornalismo, do projeto Jornalismo & Território, com o apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Porticus e Open Society Foundation