AL aprova doação de terreno ocupado por indígenas para construção de indústrias em Caucaia

Terreno cedido está quase integralmente dentro de território dos povos Anacé e ainda é próximo a uma área de proteção ambiental (APA) do rio Cauípe

A Assembleia Legislativa do Ceará (ALCE) aprovou nesta quinta-feira, 4, a doação de um terreno de 120 hectares para a prefeitura de Caucaia destinado à construção de indústrias que ampliariam o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Contudo, a área escolhida pelo governo do estado está sobreposta ao território tradicionalmente ocupado por comunidades indígenas do povo Anacé. A área está em fase de estudo para regulação fundiária e é habitado por mais de 20 aldeias indígenas.

Além de afetar diretamente os indígenas, a área doada pelo governador Camilo Santana (PT) ao prefeito Vitor Valim (Pros) também está próxima ao leito do rio Cauípe e à Área de Proteção Ambiental (APA) do Lagamar do Cauípe. A doação vem em momento de aproximação política entre os dois, que eram adversários.

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O deputado estadual Renato Roseno (Psol) criticou a concessão da área para a Prefeitura de Caucaia, em suas redes sociais. O parlamentar afirmou que o governo estava tentando votar “a todo custo”, nesta quintaF, mensagem que transfere parte do território indígena Anacé, em Caucaia, para a construção de um pólo industrial.

“O terreno, localizado sobre o leito do rio Cauípe, ao lado de uma área de preservação, vai ser destinado a um polo industrial. Governo quer aprovar isso ao arrepio de tratados internacionais, da Constituição e de um parecer técnico do GT de delimitação da terra indígena Anacé”, escreveu Roseno.

Veja a publicação:

— Renato Roseno (@renatoroseno) November 4, 2021

O Grupo Técnico de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Anacé enviou à equipe do parlamentar um ofício no qual explica a situação. Segundo o documento, a área especificada na mensagem 143/2021, enviado à ALCE, tem impactos sobre o direito ao território tradicional dos povos indígenas em Caucaia. Isso porque a poligonal do imóvel especificada encontra-se sobreposta à poligonal de Habitação Permanente do Povo Anacé.

Ainda de acordo com o ofício, habitam a área as aldeias Alto da Tabuba, Alto do Aratu, Barra do Cauípe, Bebedouro, Camará, Caraúbas, Cipó, Coqueiro, Córrego do Alexandre, Justino, Japuara, Lagoa do Barro, Mangabeira, Parnamirim, Pau Branco, Pajuçara, Pindoba, Pirapora, Planalto Cauípe, Salgadinha, Santa Rosa, São Pedro, São Bento, São Sebastião, Tabuleiro Grande, Tanupaba, Timbaúba.

“Embora haja sobreposição do já referido imóvel em relação ao território de ocupação tradicional do Povo Anacé, que está em fase de estudos para fim de regularização fundiária - por que de fato já existe ocupação tradicional a ser descrita em função da existência dos indígenas Anacé em Caucaia - as aldeias Planalto Cauípe, São Pedro, São Bento e Caraúbas, serão diretamente afetadas no que se refere a extensa área de carnaubal, de lagoas e do leito do rio Cauípe, impactando diretamente em atividades de autossustento de várias famílias indígenas, bem como sobre relações microeconômicas fundamentais para a vida social local”, justifica o documento.

No último dia 1º, o gabinete de Roseno enviou ao Ministério Público Federal (MPF) parecer sobre o impacto da proposta do governo na terra indígena Anacé. Nele, o deputado lembra que a proposta foi lida na sessão do dia 27 de outubro, quando foi aprovada para tramitar em regime de urgência na ALCE.

Nesta quinta, a mensagem foi aprovada com 25 votos favoráveis e três contrários à doação. Além de Roseno, se posicionaram contra a matéria os deputados Elmano de Freitas (PT) e Heitor Férrer (SD).

Duas emendas de Elmano foram adicionadas ao texto. A partir delas, fica determinado que a instalação de indústria na área indicada pelo projeto dependerá “do cumprimento das condicionantes, de realização dos estudos porventura estabelecidos na legislação ambiental” e que a instalação do polo industrial deve ser precedida de audiência pública, notadamente quando se tratar de indústria que tenha comprovadamente elevado impacto ambiental.

Antes da votação, uma comissão dos povos Anacés esteve na Casa para se manifestar contra a aprovação da matéria.

Indígenas souberam da doação por uma live do governador

Líder dos povos Anacé, o cacique Roberto Antonio Marques da Silva conta que os indígenas souberam da doação pela transmissão realizada pelo governador. A partir daí, buscaram o texto oficial com os parlamentares para verificar se o terreno citado fazia parte da área indígena.

“Eles não nos consultaram para não fazer a doação”, afirma. Confirmada a informação, os líderes enviaram ofício ao gabinete de Roseno e também estiveram nesta quarta na ALCE, quando a mensagem foi aprovada em plenário.

“Não sabíamos que íamos ser golpeados dessa forma pelo governo”, enfatiza.

O cacique explica que o território Anacé está em processo de estudos para demarcação desde 2009, mas a presença do grupo étnico é registrada no estado há mais de três séculos. No livro “Notas históricas sobre indígenas cearenses”, o historiador Carlos Studart Filho remonta que, em 1694, Fernão Carrilho, que foi capitão-mor do Ceará e governador da Capitania do Maranhão, “sitiou parte dos Anacé a oito léguas ao Norte da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, onde permanecem até hoje."

O líder indígena relata que a doação da área para construção de indústrias representa uma perda imensurável à comunidade.

“Nós perdemos histórias, espiritualidade, é imensurável as coisas que nós vamos perder”, diz. “O pertencimento da área é totalmente diferente de quem vive numa zona urbana. Nesse local, os parentes tiram muitas vezes os alimentos da casa, tirando da palha da carnaubeira. O sangue da nossa terra, que é a água, as industrias vão passar por cima. Sem falar que, a alguns metros do rio Cauípe existem vestígios arqueológicos, como urnas funerárias de indígenas”, conta.

“Esse território inteiro esta repleto de identidades, de provas da existência do povo anacé”, conclui.

Via nota de imprensa, o deputado Júlio César Filho (Cidadania) afirmou ter intermediado o diálogo entre o Executivo e representantes da população indígena. O parlamentar argumenta que os estudos para demarcação da área indígena ainda não foram concluídos.

“Reiteramos o compromisso do Estado em respeitar todas as legislações ambientais. Ressalto ainda que o Grupo de Trabalho, instituído pela Funai, não concluiu os estudos que comprovam que a área cedida pelo governo abrange terras indígenas”, diz o texto;

“O empreendimento vai integrar o polo do porto do Pecém e fortalecer o PIB estadual, além de estimular a produção e a geração de empregos e renda", ressalta o líder do governo na Casa.

O antropólogo Ronaldo Queiroz, membro do GT de demarcação da terra Anacé, explica que o rio Cauípe está diretamente ligado à permanência dos povos indígenas na região. É do rio que as comunidades retiram o próprio alimento, com peixes e crustáceos, além de utilizar a água nas casas, agricultura e na criação de animais.

O lugar ainda é local de “encantamento” para os indígenas, ressalta Queiroz, destinado à realização de rituais tradicionais aos povos.

A doação de parte da terra fere o direito originário dos povos tradicionais, especificado no Artigo 231 da Constituição Federal. Dentre outros pontos, a norma delimita aos indígenas o direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos, em terras tradicionalmente ocupadas.

“A questão não é a fração de terra, mas a possibilidade de efetivar uma vida indígena em consonância com todo um ecossistema, as relações ecológicas que esses grupos constituem e mantém. Que elas não estão dadas, não estão evidentes. Não é só chegar lá e ver. Não. Na verdade a gente constrói as informações a partir das experiências das famílias que vivenciam naquela região", adianta.

"O que se perde é a vida indígena. Ela diminui, vai sendo confinada. E o direito originário, que é muito pouco falado, que precede as constituições, é um direito que vem sendo sistematicamente limitado, vilipendiado , julgado às vontades da política econômica", ressalta o antropólogo.

O governador Camilo Santana (PT) enviou a proposta de doação à AlCE no dia 22 de outubro, data em que o gestor e o prefeito de Caucaia, Vitor Valim (Pros), participaram de um evento em que foi assinado o convênio para obras de proteção e restauração costeira no litoral do município da região Metropolitana de Fortaleza.

Na ocasião, surpreendeu o fato do governador aparecer próximo a Valim, apoiador de Capitão Wagner (Pros), principal adversário político de Santana e dos irmãos Ferreira Gomes, lideranças do PDT no estado.

No último fim de semana, o governador viajou à Escócia para participar do COP 26. O encontro de líderes mundiais para tratar sobre a crise climática deu destaque a diversas lideranças indígenas, incluindo brasileiras. As comunidades de povos originários são responsáveis por administrar cerca de 80% da biodiversidade da Terra, mas recebem menos de 1% do financiamento destinado ao controle de desmatamento.

Governos do Reino Unido, EUA, Alemanha, Noruega e Holanda, além de fundações norte-americanas prometeram o repasse de até U$ 1,7 bilhão (quase R$ 10 bilhões) para a proteção de territórios indígenas.

Ao retornar da Europa, Camilo comemorou nas redes sociais o avanço do Ceará na construção de uma cadeia de produção de energias renováveis. Na ocasião, o gestor destacou que a matriz energética contribui "de forma importante para a preservação do meio ambiente".

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